Wânia Dias
O mundo, tal qual conhecíamos, está mudando. Após mais de um ano sobrevivendo à pandemia da Covid-19, se tornou impossível contar quantas vezes ouvimos ou pensamos sobre isso. Trata-se de uma afirmação recorrente que, ao mesmo tempo em que nos enche de esperança sobre uma possível novidade salvadora, nos coloca sob o manto nebuloso do desconhecido.
Em poucos meses, praticamente toda a nossa estrutura de vida em sociedade se transformou. Práticas, hábitos, relações. Tantas palavras e expressões, antes pouco usadas, hoje se tornaram vocabulário cotidiano: toque de recolher, lockdown. Ensino remoto, home office, Call. Saturação, PCR, ventilação mecânica.
Estamos experimentando mudanças estruturais não apenas em nossos alicerces sociais, mas, sobretudo, em nossa condição humana. O quadro, de tão inesperado e imprevisível, nos remete às cenas mais sombrias dos clássicos filmes apocalípticos. Mas é tudo real! Muito real!
E, enquanto tudo isso acontece, buscamos respostas do âmbito mais prático da vida: o que fazer? Como trabalhar? Como estudar? E também do âmbito das subjetividades: quem sou? Qual a minha missão nesse mundo? O que isso tudo quer nos dizer?
Luciano Santos, filósofo
São pensamentos individuais, unilaterais que, se analisados de modo mais amplo, refletem o posicionamento das grandes nações, que estão tratando de modo isolado essa que é uma crise societária universal. Cada país cuidando dos seus, sem olhar para o todo, promovendo ações que desaguam em múltiplas agendas reacionárias, atrapalhando a coordenação unificada da crise.
No cerne dessa luta a la “cada um por si” temos a geopolitização da vacina que é agravada pelo desgoverno de alguns países, o perigoso aprimoramento das ferramentas de vigilância, a pretexto do combate à pandemia, e a virtualização de emergência, que agora baliza o modus operandi das nossas rotinas.
O que tudo isso significa para a condição humana e nossos processos civilizatórios?
A condição humana em tempos pandêmicos
A grave crise societária provocada pela pandemia nos obrigou a desenvolver ações de forma apressada para dar conta da celeridade e imprevisibilidade da atuação do vírus. Passamos a pensar em como superar a ameaça imediata, desconsiderando os desdobramentos de tais decisões no futuro que se avizinha, no mundo que habitaremos quando a tempestade passar.
Decisões que antes levariam anos de deliberações são rapidamente aprovadas. Tecnologias imaturas, como as utilizadas no ensino remoto, por exemplo, são inseridas em nosso cotidiano, porque os riscos de não se fazer nada são ainda maiores.
Para o filósofo Luciano Santos, o constante estado de emergência em que estamos vivendo aponta para uma pane na nossa ordem civilizatória.
“Me parece que a proliferação desses estados de emergência está a nos dizer que há uma situação planetária de pane na ordem civilizatória que nos rege, a qual chamamos de globalização. Essa pane no sistema, com todas as séries de emergências que ela suscita, deve radicalizar uma discussão sobre quais as prioridades que cabem ao Estado nesses contextos emergenciais. E é evidente que, no caso específico do Brasil, onde nós vivemos numa situação praticamente de anomia, quer dizer, de sistemática deserção do governo, essa questão se torna extremamente crucial. Retomar a responsabilidade do Estado como gestor da ordem pública é uma questão de sobrevivência coletiva”, destacou Luciano Santos.
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Contudo, lidar com essa condição contínua de emergência e tudo o que ela traz como consequência, é apenas um dos dilemas que a humanidade enfrenta nesse mundo pandêmico. A reboque da crise, surgem agendas reacionárias das mais diversas categorias. Uma delas, a mais polêmica talvez, é a vigilância digital dos cidadãos, justificada pela necessidade de controle da disseminação do vírus. Um labirinto da ética, que nos coloca de frente a uma equação difícil de resolver: direitos individuais X direitos coletivos: os fins justificam os meios?
Olho que tudo vê
Caminhando pelo perigoso trajeto que está nos levando a essa nova ordem civilizatória, citada por Luciano Santos, temos presenciado governos de todo o mundo construindo e executando sistemas de vigilância comportamental, biométrico, genético, geodemográfico. São tantos tipos diferentes de monitoramento social, que seria impossível enumerá-los. Na maioria das vezes, o cidadão sequer sabe que está sendo monitorado e que tem os seus dados capturados.
O debate sobre essa questão é longo, a própria Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não restringe o uso de dados pessoais, quando a finalidade é para uso de segurança pública e calamidade pública. Por outro lado, existem os direitos individuais, como o direito à intimidade e privacidade, previsto em nossa Constituição Federal, que “oferece guarida ao direito à reserva da intimidade assim como ao da vida privada”.
Núbia Reis, cientista social
Para a cientista social e especialista em direitos humanos Núbia Reis, a economia política de vigilância se situa na linha tênue entre os direitos individuais e os direitos coletivos.
“De maneira geral, todos os países centrais e, em alguma medida os periféricos, usaram do expediente da vigilância digital para o controle sanitário da disseminação do vírus dentro e fora das suas fronteiras. Aqui em Salvador, por exemplo, a prefeitura controla a disseminação do vírus a partir de câmeras termais instaladas na estação de transbordo. A economia política de vigilância se situa na tênue fronteira entre os direitos individuais e os direitos coletivos e difusos. Não é uma equação fácil de resolver. Ainda que possa ter fins coletivos, seus excessos são de difícil controle público e violam frontalmente os direitos individuais. Por isso, os defensores dos direitos humanos reivindicam um esforço global para o controle civil e político, em nível nacional e transnacional, do uso desses dados para outros fins que não ultrapassem o controle da pandemia”, contextualizou a Núbia Reis.
A excepcionalidade utilizada para afrouxar a responsabilidade ética e ampliar a vigilância, nos faz pensar sobre a duração dessas medidas. A humanidade já presenciou medidas autoritárias aprovadas em outras crises e que foram normalizadas depois, como o aumento da vigilância nos EUA, após o 11 de setembro, que durariam até 2005, mas estão vigentes até hoje.
Vigilância digital, monitoramentos, cerceamento da liberdade de expressão e de acesso à informação. São muitas as violações dos direitos individuais durante a pandemia, sempre com a justificativa de contenção do vírus, e os impactos da normalização dessas ações autoritárias para a nossa, já adoecida democracia, podem ser gigantescos.
A geopolítica da morte
Outro ponto ético importante diz respeito a geopolitização da vacina. Interesses comerciais, disputas históricas entre laboratórios e grandes potências econômicas mundiais. O cenário é caótico e hostil.
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A Organização Mundial da Saúde (OMS) tenta assegurar acesso às vacinas e aos equipamentos de proteção para os países periféricos e mais pobres, segue em pauta também a possibilidade de quebra de patentes. Mas um ponto crucial é a celeridade com que essas ações são implementadas, considerando que o vírus parece não respeitar o binômio tempo/espaço da ação política.
Os países mais ricos e com maior acesso a tecnologia garantiram logo as suas doses. Assistimos, por exemplo, nações como o Canadá, ostentar cinco vezes mais doses de vacina do que o necessário para vacinar todos os seus habitantes, enquanto países mais pobres definham e apresentam números alarmantes de óbitos por Covid-19.
Para Núbia, esse cenário, por um lado, indica a ausência dos direitos humanos como padrão normativo, sociorrelacional e ético-político nas decisões sobre a pandemia. Por outro, é uma excelente oportunidade para testar o poder social dos direitos humanos como pilar civilizatório.
“Os países centrais que controlam os investimentos, a produção e a distribuição das vacinas têm uma excelente oportunidade para provar que os direitos humanos não são meros recursos retóricos normativos, políticos e morais. Racionalmente, todos os caminhos apontam que a cooperação solidária seria a melhor via para vencer a pandemia. No plano político e pragmático, temos muitos interesses em jogo que não podemos reduzir a um “isolamento nacionalista”. Neste caso, os interesses econômicos sobrepõem claramente os interesses sociais. Mas, a dinâmica do vírus é um teste para a sobrevivência do sistema neoliberal e seu fetiche pelo mercado como “agência” política e social”, apontou Núbia.
Nesse ínterim, Luciano Santos ressalta que chegamos historicamente a uma encruzilhada, onde a distopia e a utopia se apresentam muito próximas. Para ele, é possível que nosso futuro seja marcado pelo confronto, cada vez mais aberto, entre uma possibilidade distópica e uma possibilidade utópica decorrentes do processo histórico que nos trouxe até aqui.
Juracy Marques, ecólogo humano
“A distopia, quer dizer, toda essa produção de uma ordem civilizatória em que o poder (financeiro, tecnológico-industrial) foi agigantado em detrimento do sentido, produzindo situações cada vez mais insolúveis, aponta para a possibilidade de que os nossos piores pesadelos se tornem cada vez mais normalizados, cotidianos. Mas, justamente em resposta a isso, também vejo que aquelas forças comprometidas com a Vida, atores sociais que levam consigo o compromisso de cuidar das populações humanas e da Terra, que é a nossa morada, vindo a organizar-se, tornem cada vez mais cotidiana a mobilização de uma política utópica, com vistas à transformação dos fundamentos desse sistema insolúvel, inviável, que nos levou até onde estamos”, explicou o pesquisador.
Todo esse cenário político-social que se estabelece coloca em pauta o desrespeito escancarado das liberdades e direitos individuais. A Declaração Internacional dos Direitos Humanos foi o marco civilizatório da humanidade, no pós-guerra, há 72 anos. Sete décadas depois, dentro desse panorama de inversão desmedida de valores, esse documento continua sendo o caminho possível para resgatarmos a dimensão humana da nossa humanidade.
Futuro pós-pandêmico e seu novo desenho civilizatório
O futuro pós-pandêmico é um lugar distante, ainda estamos no epicentro da crise. Mas uma coisa é certa, o futuro chegará, a tempestade passará e teremos que lidar com o resultado das decisões tomadas no hoje. Estamos, nesse exato momento, rascunhando o nosso novo desenho civilizatório, que ditará quem seremos, enquanto humanos, quando esse amanhã chegar.
O ecólogo humano Juracy Marques destaca que, a urgência agora é que mudemos a nossa relação com a natureza e o nosso olhar sobre os modelos civilizatórios que, historicamente, temos pensado como atrasados.
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“O que, de fato, nos torna humanos? De alguma forma vivemos a ilusão de que já superamos a nossa condição animal por uma condição humana. Freud, e muitos outros autores, nos alertam que o animal que fomos ainda nos habita. Poderíamos ir muito longe na reflexão dessa questão, mas simplificaria dizendo que a humanidade da humanidade ainda não chegou. Mas poderá vir, se tomarmos a decisão acertada nesse momento crucial da nossa história e, acredito, a valorização excessiva do capital e da tecnologia, sobretudo, a sedução pela inteligência artificial, não seja o caminho. Só para dar um exemplo, mais de 70% das florestas que ainda estão de pé no planeta, se mantêm em decorrência da forma como os povos tradicionais, particularmente os povos indígenas, se relacionam com a natureza, tendo-a, como algo sagrado”.
A pandemia é uma tragédia civilizatória, que já matou quase quatro milhões de pessoas no planeta, das quais quase 500 mil são brasileiras. Esses números mostram o quanto a vida humana é frágil, mas acima de tudo, o quanto ela é desvalorizada, banalizada.
Juracy finaliza: “Precisamos, nesse momento chave da nossa história, fazer uma opção por um modelo de civilização que honre a jornada extraordinária da nossa espécie como forma de celebração da vida e da existência, que é tão maravilhosa”.
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Todos os pesquisadores que participaram dessa reportagem são professores da UNEB. As entrevistas realizadas com cada um deles renderam um conteúdo tão potente, que decidimos publicá-las na íntegra para que você, leitor, possa ampliar ainda mais seu olhar reflexivo sobre o tema.
Luciano Santos – Currículo Lattes
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Núbia Reis – Currículo Lattes
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Juracy Marques – Currículo Lattes
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