Reprodução de matéria do repórter Renato Grandelle, publicada pelo site O Globo Sociedade
Cícera está inquieta. A jovem de 13 anos, que vive no interior da Bahia, testemunha a migração de sertanejos, flagelados por uma estiagem histórica, em busca de uma terra onde possam plantar e levar o gado. Passando pelas casas abandonadas de seu povoado, a menina decide correr atrás de Canudos, uma cidade em que, reza a lenda, a seca não existe. Esta saga, que começa em 1895, é o tema do game “Árida”, desenvolvido por pesquisadores da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), cujo primeiro dos três episódios será lançado em abril.
Segundo os técnicos do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Comunidades Virtuais da UNEB, responsáveis pela concepção do projeto, “Árida” tem uma “motivação cultural, porque, além da formação técnica, há a histórica”. Para criarem o cenário do game, a equipe estabeleceu uma base em Canudos, a cerca de sete horas de Salvador, e de lá traçou expedições pelo sertão.
— É comum imaginar o sertão como uma imensidão laranja, mas isso é um estereótipo — explica o historiador Filipe Pereira, diretor geral da Aoca Game Lab, estúdio que desenvolveu o game. — Vimos a composição geológica e geográfica do bioma e atestamos sua riqueza. Por isso os cenários são coloridos. Queremos mostrar outra maneira de enxergar a região.
Perfil do sertão
A protagonista de “Árida” mereceu atenção especial. Cícera deveria ter um perfil que reflete o sertão e boa parte do interior do país — uma menina exploradora de pele escura, queimada de sol, meio índia e meio negra.
— É simbólico ter uma personagem negra, e um paradoxo ainda maior que seja uma jovem mulher desbravando sozinha o sertão e buscando suprimentos para sobreviver. Normalmente imaginamos que estas dificuldades devem ser superadas por homens adultos — explica Pereira. — Quando percebe como a seca assola seu povoado, Cícera decide buscar uma terra onde não há fome ou sede. Alguns acreditam que este local existe, outros duvidam. Em seu caminho, ela interage com outros personagens e entende a motivação de cada um.
Na primeira parte do game — bancada por um financiamento de R$ 80 mil, vindo do governo baiano —, Cícera conviverá com seu avô, um respeitado ex-vaqueiro que a ensina a lidar com ferramentas básicas para sua sobrevivência, como um facão com que extrai a água armazenada em cactos. O game foi apresentado recentemente na Campus Party, em São Paulo, em eventos sobre direção de arte.
Pereira prefere manter segredo sobre os desafios que devem ser superados por Cícera nas etapas seguintes. A segunda parte do game, cujo lançamento está previsto para o segundo semestre, custará R$ 240 mil, verba obtida por um edital da Agência Nacional do Cinema. Também foi realizada uma parceria com a Virtualize, uma empresa de desenvolvimento de jogos do estado. Agora, os técnicos buscam recursos para traçar a última fase do jogo, que estará disponível no ano que vem.
Enquanto corre atrás do dinheiro, a equipe de Pereira se debruça sobre pesquisas históricas e novos efeitos especiais. Uma das atualizações mais recentes, por exemplo, incluiu um novo personagem, o Padre Olavo, e a construção do Vale da Morte, uma região conhecida pela seca. Pereira já definiu que o enredo ocorrerá inteiramente antes da Guerra de Canudos, o confronto entre o Exército e um grupo de sertanejos liderados por Antônio Conselheiro, travado entre 1896 e 1897, que deixou mais de 30 mil mortos.
A equipe responsável pelo projeto acredita que, embora o tema de “Árida” seja local, também terá apelo em outros países. O próprio nome da protagonista foi escolhido porque, embora seja comum no Nordeste, tem um enunciado forte que ajudaria em suas vendas no exterior. O jogo será divulgado em plataformas internacionais.
A construção do game pode ser acompanhada na página facebook.com/aocagamelab.