Recentemente, em um evento da ESA OAB-Ba, em que discutíamos o impacto da luta internacional contra a discriminação racial e seus reflexos no Brasil, acabamos por caminhar pelo tema do empoderamento da mulher negra e no que isso implicaria para um necessário debate de gênero entre homens negros e mulheres negras.
A constatação era de que tínhamos uma agenda ainda não profundamente debatida sobre a permanência do racismo anti-negro, como um fenômeno discriminatório nefastamente praticado em todo o mundo, e o ainda persistente machismo praticado por homens brancos e negros sobre a mulher negra. Tudo isso impactado sobre a constatação de que, nesse cenário, o homem negro também se constituía numa vítima sistêmica em face de uma insidiosa brutalização do seu papel social que o coloca numa situação de desaparecimento físico orquestrado pelo aumento do genocídio contra a população negra no Brasil.
Essa é uma discussão que devemos colocar num horizonte de empatia e solidariedade políticas mútuas. Devemos reconhecer que a mulher negra tem sofrido ao longo dos séculos uma situação de subjugação histórica, praticada por homens e mulheres brancas e também, por homens negros. O homem negro, em geral, é cobrado para manter-se focado no desempenho da sua masculinidade, hipersexualidade, desempenho social e laborial, e isso o aproxima de uma prática que diminui a sua humanidade e o coloca numa panaceia de vulnerabilidades e agressões no seu núcleo social e familiar. Outro assunto que tem suscitado diversas polêmicas e tensões é aquele que trata das relações afetivas inter-raciais. De lado a lado, as preferências quase sempre mencionam as “ausências” do homem negro ou da mulher negra, ou ainda a necessidade de se ampliar o assunto para o campo da “raça humana” para justificar as suas predileções.
Nesse contexto, entramos em um universo sensível já que sabemos que tanto a masculinidade, quanto a feminilidade, são práticas socialmente construídas, e que estamos num momento salutar para este diálogo, potencializado pelas discussões trazidas por Lélia Gonzalez, Sobunfu Somè, Oyèrónkẹ Oyěwùmí, Nah Dove, Gisleine Aparecida dos Santos, Katiúscia Ribeiro, Karla Akotirene, Anin Urasse, etc, sobre a natureza colonial da questão de gênero e de como nos rendemos a este modelo que pouco nos diz para uma futura emancipação isonômica de homens e mulheres.
Para o “mundo masculino” o sexo é visto ao mesmo tempo como um direito, uma necessidade e uma obrigação enquanto homem idealizado. Pondero aqui ainda a insuficiência da expressão “homem negro” e “mulher negra” para localizarmos as manifestações de gênero e sexualidade que marcam corpos diversos e singulares para além da heteronormatividade. Nesse contexto, quase tudo que estamos refletindo aqui não seria inteiramente apropriado para pessoas negras homossexuais ou com outra orientação sexual.
Dai, a nossa indagação: Quais discursos emancipatórios devem compor uma agenda para libertar-nos, homens e mulheres negras, dessa dupla opressão? Queremos mais poder e reconhecimento, mas a busca pelo poder e reconhecimento nos trai, nos revela e nos desnuda, até porque, confrontamo-nos com o machismo quando idealizamos relações alternativas e estamos mais solitários e sozinhos mesmo com as intensas atividades sociais que desempenhamos. Hoje, já percebemos algumas tímidas e expressivas iniciativas de homens dialogando entre si e entre as mulheres sobre o assunto do gênero e de como podemos tratar disso sem medo, omissão e revanchismo.
Os valores da maternidade, paternidade, família e papéis sociais comunitários ganham relevo nessa nova forma de pensarmos e praticarmos a sociedade contemporânea da condição humana negra nesse momento do mundo. Mas o desafio é por encontrar valores e ações que localizam homens e mulheres fora do contexto moral do mundo capitalista, machista e racista, e podermos nutrir a necessidade de reorganizarmos os papéis sociais e sexuais entre homem e mulher negras e outras identidades de gênero e sexualidades em novas dimensões étnico-político e sociais.
O homem é jogado a realizar um papel de completa auto sustentação simuladora, por isso, o homem está em crise e o homem negro está em crise e brutalizado. Somos seres fora do lugar e não temos força, sozinhos, para mudar esta tendência estrutural. A mulher negra tem vivido com mais intensidade as mudanças dos tempos e tem se labutado com muito mais capacidade de entender estas complexidades e, de lambuja, tem confrontado muitos homens negros a se libertarem da sua agonia negra prometeica de poder fazer mais do que podem e conseguem!