ASCOM entrevista: Juracy Marques: “O espírito humano está doente. A pandemia foi uma gota que fez a alma transbordar ao longo da nossa jornada evolutiva”

 

Juracy Marques, ecólogo humano

Ancestralidade, cooperação, reconexão com a natureza. Esses são pontos cruciais destacados pelo professor da UNEB Juracy Marques em entrevista sobre o nosso futuro pós-pandêmico, concedida à Assessoria de Comunicação (Ascom) da universidade.

Juracy, que é ecólogo humano, nos inspira com seu olhar realista a respeito dos perigosos caminhos que estamos percorrendo em nossa jornada evolutiva e sobre as mudanças urgentes que precisamos promover em nós, enquanto indivíduos e enquanto sociedade, para que essa tragédia civilizatória que vivemos hoje, não seja o fim, mas sim o  marco de um recomeço.

Para o pesquisador, “nenhum cidadão desse planeta, deve furta-se ao chamado desesperado que a vida nos impõe”.

Assessoria de Comunicação (ASCOM): Hannah Arendt diz que “Os humanos são responsáveis pela criação contínua de suas próprias condições”. Seríamos, pois, inventores inesgotáveis de nossa própria condição humana?

Juracy Marques: Indiscutivelmente. Isso não quer dizer que pense o mundo, essencialmente, pela dimensão material. Defendo o pressuposto de que há uma causa fundamental para a origem de tudo. Como espiritualista, crítico ao papel das religiões, acredito que o Grande Espírito, por muitos chamados de Deus, Destino, Caos, Olorum, Tupã, Deisnger Inteligente, etc, “é nosso estado de consciência”. Miguel Nicolelis, o “Einstein brasileiro”, no seu mais recente livro “O Verdeiro Criador de Tudo: Como o Cérebro Esculpiu o Universo como Nós o Conhecemos”, escreve que “por volta de 100 mil anos atrás, cada cérebro humano já tinha à disposição por volta de 86 bilhões de neurônios capazes de estabelecer entre 100 trilhões e 1 quadrilhão de contatos diretos, ou sinapses, entre si. De dentro desse atelier neuronal incomensurável, o Verdeiro Criador de Tudo começou a sua obra monumental de esculpir o universo humano como o conhecemos”. Como observamos, as sinapses do nossos cérebro (transformação de estímulos químicos em impulsos elétricos)  são maiores que o número de átomos da nossa Galáxia. Esta citação, a partir de uma teoria cerebrocêntrica, de alguma forma, localista,  sustenta que a vida se resume às aventuras experimentadas pelos nossos cérebros que estão conectados, sincornizados, numa rede que desenha nossos destinos e que Nicolelis nomeou como Brainet.

Tomando a seguinte citação trazida por Goswami, no seu livro “Evolução Criativa”, que diz, “na visão atual, a matéria não evolui até a vida, mas todo o universo material evolui em possibilidades até a primeira célula viva e seu ambiente estarem prontos para manifestar as funções biológicas rudimentares (reprodução e manutenção)”, penso que, a condição humana, com suas dores e sabores, é desenhada num cenário cósmico, também fora do espaço tempo, como ondas de possibilidades, e, não necessariamente, e não apenas biológico-neuronal.

Entretanto, há questões trazidas  na ecologia do cérebro, ou seja, na cerebrosfera, que não podemos subestimar, a exemplo, dos múltiplos comportamentos humanos causados pelos níveis de prazeres (gozo) gerados por nossas interações com a dopamina e outros neurotransmissores. São essas camadas que estão por trás da nova plasticidade civilizatória que atravessamos, mas, dificilmente, relacionaremos uma compulsão por tecnologias ou a desilusão pela vida, o suicídio, mal do nosso século, à atuação dos algoritmos que moldam a nossa percepção da vida, dos nossos gostos e desgostos.

Assim, de inventores da nossa condição humana passamos a ser inventados nessas redes de abstrações mentais que, cotidianamente, nos atravessaram e nos atravessam, na nossa longa jornada civilizatória. Portanto, não há dúvidas que criamos os universos humanos, como as borboletas criam os universos das borboletas, as orquídeas os universos das orquídeas e os vírus, os universos dos vírus. Embora disputemos o controle do mundo com outros seres, particularmente vírus e bactérias, nessas primeiras décadas do século XXI, a nossa espécie está vivenciando o “abismo evolucionário” marcado, sobretudo, pela divinização da tecnologia e do capital. Se continuarmos acreditando nesses dois deuses, nossa espécie experimentará o colapso civilizatório que se avizinha. Precisamos, nesse momento chave da nossa história, fazer uma opção por um modelo de civilização que honre a jornada extraordinária da nossa espécie como forma de celebração da vida, da existência, que é tão maravilhosa.

ASCOM: Mas, com tantas mudanças estruturais em nossa sociedade, que surgem a reboque da pandemia, como ainda é possível manter as características primárias da nossa humanidade, manter aquilo que nos torna humanos?

Juracy Marques: Essa pergunta é marcada por uma inqueitação que trago desde muito tempo: o que, de fato, nos torna humanos? No meu livro “A Ecologia de Freud: Os Ecossitemas da Natureza Humana” mergulho nessas reflexões. De alguma forma vivemos a ilusão de que já superamos a nossa condição animal por uma condição humana. Freud, e muitos outros autores, nos alertam que o animal que fomos ainda nos habita.

Se um primo próximo a nós, nossos irmãos neandertais, chamados, equivocadamente, de “homens das cavernas”, visse a forma destrutiva como estamos estruturando a nossa civilização, acabando com as florestas, construindo armamentos de destruição em massa, causando mundanças nos sitemas climáticos, enchendo o universo de lixo tecnológico, tentando colonizar Marte acreditando no colapso da Terra, enfim, diria que nós somos primitivos demais. Nós somos os homens e mulheres das cavernas digitais.

Voltando à pergunta, há um consenso em muitas ciências humanológicas, que o que marca a passagem do animal para o humano, é o desenvolvimento da linguagem, estruturada na passagem do que chamamos “Revolução Criativa”, datada entre 30 a 70 mil anos atrás. Destaco que estamos falando de um espécie cujos ancestrais datam de mais de 7 milhões de anos e que, por volta de 300 mil anos, já tinha chegado à condição Sapiens. Então, o que carregamos nessa nova roupagem da nossa espécie, como a inerdição do incesto, a dinamização da linguagem, a ritualização da morte e o culto às divindidades, entre outros aspectos, é algo bem recente no nosso comportamento humano e se deve, entre outros fatores, à bipedização e, acredita-se, ao aumento do nosso cérebro.

Poderiamos ir muito longe na reflexão dessa questão, mas simplificaria dizendo que a humanidade da humnidade ainda não chegou, poderá vir se tomarmos a decisão acertada nesse momento crucial da nossa história e, acredito, a crença excessiva no capital e na tencologia, sobretudo, a sedução pela inteligência artificial, tão cultuada por transhumanistas e singularistas, não seja o caminho. Só para dar uma exemplo, mais de 70% das florestas que ainda estão de pé no Planeta, estão em decorrência da forma como os povos tradicionais, particularmente os povos indígenas, se relacionam com a natureza, tendo-a, como algo sagrado.

Então, o futuro da humanidade deve olhar para estes modelos civilizatórios que, historicamente temos pensado como atrasados. O elogio da modernidade, o culto ao modelo civilizatório colonial supremacista, ainda em voga, deve ruir e, no seu lugar, devemos plantar uma nova forma de ver o mundo que está no coração dos povos que amam a natureza e a vida e que não tiveram a alma ressecada pela ganância ao poder, ao dinheiro.

ASCOM: Você acredita que a pandemia é/será um marco evolutivo da humanidade? Seria ela a matriz para a construção de um novo mundo?

Juracy Marques: Poderíamos aprender muito com esta experiência. Como diz Krenak, “o presente é um presente.” Entretanto, como está exposto, os  escarniçadores da Terra, os donos do capital, que só pensam em acumular riqueza, e isso se dá pela destruição da natureza, que é a origem das pandemias, continuaram sua carnificina ecológica sem nenhum pudor na pandemia. Não há limites para a ambição dessa parcela da humanidade. Krenak usou uma metafóra que me agrada muito: “gostaria de colocar todos os biblionários do mundo, que só pensam no capital, dentro de um cofre e tracá-los com o dinheiro deles dentro”.

Certa vez, vi escrito numa aldeia hippie, na Bahia: “está chegando o tempo em que os pobres temerão a fome e os ricos temerão os famintos”. Não podemos ignorar que é a luta pela sobrevivência que ditam as leis da seleção natural.  Então! Vivemos a era dos extremos. Poderíamos ter aprendido muito com as lições trazidas por esta pandemia que já matou 4 milhões de pessoas no Planeta, destes, quase 500 mil irmãos brasileiros. Mas, não! Os donos do capital estão aproveitando esta tragédia civilizatória para aumentar suas riquezas mesmo que isso, possa indicar, o fim da humanidade, e, acho, se eles também  forem humanos, deles.

ASCOM: Reinventamos a nossa humanidade em cada marco evolutivo?

Juracy Marques: Sim, mas essa reinvenção, necessariamente, não quer dizer que estamos tendo vantagens evolutivas. Veja o progresso da ciência e, como consequência, criamos as condições para exterminarmos toda a humanidade, que vantagem evolutiva há nisso? Há mais ganhos nos modos primitivos dos nossos ancestrais, que nas fantasias que cultuamos sobre nosso futuro.

ASCOM: Que civilização a humanidade está desenhando para o nosso futuro pós-pandêmico?

Juracy Marques: Observamos, estamos quase todos traumatizados. O espírito humano está doente. A pandemia foi uma gota que fez a alma transbordar nesse oceano que ficou cheio ao longo da nossa jornada evolutiva. O momento de agora e, pós-pandemia, exigem que tiremos das mãos dos detentores do capital, o controle pelo destino do mundo. Eles não amam a vida, amam apenas o dinheiro. Portanto, o que estou dizendo, claramente, é que, só haverá nosso futuro se o recuperarmos das mãos ecocidas dos detentores do capital, que têm levado, para os desertos da alma, toda a beleza de se viver. Eles são amargos, nunca saberão a grandiosidade de viver uma vida simples, conectada com a natureza, solidário aos nossos semelhantes. Eles não honram a dimensão fundamental para o sucesso evolutivo da nossa espécie: a cooperação.  Suas percepções existenciais são egocentradas. Como diz Davi Kopenawa Yanomami, “eles só sabem escavar as doenças do coração da Terra”. Desejo, mesmo, que nossas vidas pós-pademia, caso não seja normal, ao menos não seja anormal.

ASCOM: Sei que é impossível prever o que virá, mas, considerando a sua área de estudo e empirismo, quando você fecha os olhos e pensa no futuro, o que vê?

Juracy Marques: Quando olho o futuro só vejo a natureza. A reconexão com a natureza é que poderá nos salvar. Dou este conselho a quem está perdido nos cárceres algorítmicos onde nos escravizamos. Vá para a natureza e se salve!

Quando olho para a Natureza sinto-me perto de Deus. Me apaixonam os pássaros, as flores, os rios, o mar… Minha alma vive dessas formas de me encantar pelo olhar. Não sei como descrever, mas meu espírito se vê espelhado na face de Deus refletida na Natureza.

A Ecologia tornou-se, para mim, minha religião. Sou um ecoespiritualista tão perdido nesse universo quanto uma folha jogada às tempestades da existência. Mergulho no Espírito de Deus todas as vezes que entro na alma das flores ou no silêncio das estrelas. Mas, nesta questão, não estou passivo, estou lutando, militando.

Mas, alerto, essa ciência dos sistemas da vida é tão preciosa e tão perigosa. Os debates socioambientais, todos eles, quer os que defendem a conservação das florestas, das montanhas, dos rios e oceanos até aqueles que tratam das pegadas ecológicas da espécie humana, estão sob o controle de uma sofisticada rede do crime organizado que gozam da proteção política e econômica das grandes corporações internacionais. Isso vale para os sistemas de produção de energia, para o mercado das infraestruturas, para as destrutivas atividades minerárias, para a ambiciosa usurpação da biodiversidade e para a inominável teia da exploração e escravização humanas.

Chico Mendes dizia que “fazer ecologia sem luta de classe é praticar jardinagem”. Esse campo não é tarefa para pessoas ingênuas e amadoras. Requer, também, uma posição ética radical que exige de nós negarmos a negação e passarmos a assumir uma postura ética revolucionária com a nossa própria vida. Temos que, de fato, ser a mudança que desejamos para o mundo. E como dizia Disraeli, “o momento exige que os homens de bem tenham a audácia dos canalhas”.

Nenhum ecólogo, nenhum cidadão desse Planeta, deve furta-se ao chamado desesperado que a vida nos impõe. Espero que, quem esteja lendo este desabafo da minha alma, seja mais uma gota nos rios de esperança que alimentam nossa vida oceânica que nesse momento grita.

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Juracy Marques (ver currículo lattes) é fonte da nossa primeira edição da Reportagem de Capa Pandemia e condição humana: que futuro estamos desenhando para a humanidade? Já conferiu? Clica aqui e nos acompanhe nessa jornada reflexiva sobre o desenho civilizatório que estamos rascunhando para o nosso amanhã.