UNEB, 38 ANOS: Mainha, eu, os meus, a seca e a chuva no sertão | Eliete Fagundes

“Meu Deus, será que essa situação vai mudar?”

Lembro-me como hoje. Essas palavras foram ditas por mim, Eliete Fagundes, mulher negra, quilombola do Tijuaçu, em 1996, quando tinha apenas 12 anos. Foi uma tentativa de conversa com o criador, mas, também, a súplica de uma criança desesperançada.

Era uma tarde quente, como quase todos os dias daquele ano. A seca assolava o sertão da Bahia e eu temia pela fome. Quem sobrevive da roça, depende da chuva. Hoje, sei que esse não é o tipo de pensamento que uma criança deve ter, mas, àquela altura, ele não saia da minha cabeça.

Sou filha de pais pobres, negros e semianalfabetos. Esperavam de mim o mesmo futuro. Éramos oito em uma casa de taipa, pau a pique… quatro cômodos e um banheiro cercado, do lado de fora. Mainha, tratando fato [de boi] e vendendo milho na feira. Meu pai, menos presente do que se esperava.

Precisei amadurecer cedo, aos 10 anos já trabalhava e frequentava a igreja. Cuidava dos filhos dos outros e ajudava com os meus irmãos, catava osso, carregava água em tonel, o que surgisse. Um pouco depois, já comecei a dar aula… sim, aula! Era professora dos meus amigos… tinha até outra que era diretora, fazíamos boletim de desempenho e tudo!

Liberdade e agonia

Isso me devolve àquele dia em 96. Depois de madrugar para catar milho com mainha, dona Dejanira Fagundes, fui para a escola, também em Tijuaçu. Eram apenas duas salas, nem muro tinha. Mas não era isso que me transmitia liberdade, era a escrita.

Sempre tive a facilidade de pegar as coisas de ouvido. Nunca gostei disso de decorar… decoreba. Gostava de questões abertas, para me expressar. O que tinha na aula, eu aproveitava ao máximo.

Saindo de lá, peguei transporte (de graça) e corri na feira de [Senhor do] Bonfim. Como sempre fazia, passava oferecendo milho e fato, e tentava trocar por qualquer pedaço de carne nos açougues. Quando dava certo, colocava no fogareiro… hummmm… que carne gostosa! Outra lembrança boa!

Mas, deixe eu voltar para o assunto: 18km à frente, já estava em casa de novo. “É de taipa, mas, é nossa”, sempre dizia a minha mãe. E de lá, olhando para o chão batido e para quem passava, senti calor e agonia. Minha irmã trabalhava em Senhor do Bonfim e, confiando nela, “se tudo der errado, pelo menos teremos o de comer”, eu rezava.

Sem desistir!

Entre roça, carona no pau de arara, feira, aula, rua, casa dos outros, ponga em transporte, brincar de escola, os dias foram passando. Mais rápido do que gostaria, porque quando a noite chegava, era o candeeiro que iluminava a casa. A nossa era a única da rua que não tinha luz elétrica, era ruim demais para estudar.

Eu, adolescente!

Um ano depois, aos 13, quase desisti do que o destino reservava para mim. Sofri com o preconceito em uma casa que trabalhava, em Senhor do Bonfim. “Lugar de empregada, meio-dia, é na cozinha, não é aqui fora”, ouvi, em meio a uma briga em que nada tinha a ver. “Eu lá sei que horas é para almoçar?”, pensei. Eu comia quando dava certo.

Tentaram até mudar o meu turno na escola. Queriam que eu trabalhasse o dia todo. Muita gente não quer que a gente estude, essa é a verdade. Trabalhei para a mãe, professora, duas filhas e seus maridos, advogados. Foram 15 dias horríveis, recebi R$ 5 e fui embora para casa. Melhor do que “você quer o dinheiro ou a comida?”, como a minha irmã já teve que escutar. Mas, ali, pensei em desistir.

Com o apoio de mainha e a minha vontade, segui na escola, em Tijuaçu. Todo ano era uma aflição. Tinha um prazo para apresentar fardamento completo, como manda o figurino. Nunca sabia se daria certo… Minha mãe sempre dizia: “quero dar a vocês o que nunca tive”, mas, às vezes, não tinha como. Minhas irmãs mais velhas ajudavam também. Ainda assim, e quando a farda estava lá e mudavam o padrão? Novo sofrimento!

Trabalhando com o que dava e cuidando de serviços domésticos no Tijuaçu e em Senhor do Bonfim, continuei trilhando o meu caminho. Nunca perdi de ano. Só fiquei em uma recuperação. Completar a 8ª série do Ensino Fundamental era uma grande vitória, tinha até formatura! E eu cheguei lá! 50 começaram a 5ª comigo, 18 saíram para o ensino médio.

Continue ensinando!

Estava certa de que queria seguir para a formação geral, mas, a diretora da escola decidiu me colocar para fazer o magistério. Seria professora! Mas, nem livro eu tinha. Fizeram até campanha para um de matemática, queria tanto… mas, não deu. Só algumas amigas com pais aposentados ou funcionários públicos conseguiram.

Na verdade, faltou foi para a farda de novo. Ainda frequentando a igreja, escrevi uma carta para Deus. “Ô, meu senhor. Quero ser fiel a ti, seguir com minhas obrigações”. Ele ouviu as minhas preces, a mãe de uma colega viu e me deu o dinheiro para as roupas, ainda havia esperança.

Perspectivas para mim, mas, também para os meus. Antes da maioridade, a vocação me puxou pelo pé. Trabalhei como alfabetizadora, através do Programa BB Educar. Foram alunas, a minha mãe e a minha sogra, além de outras pessoas interessadas em aprender a ler e a escrever. Na época, já namorava e contava as moedinhas para tirar cópia das apostilas para estudar.

São tantas coisas culturais que você precisa desconstruir para dar um salto na vida… Minha mãe tem uma letra linda. Minha avó foi professora. Ainda assim, o preconceito e a necessidade fizeram com que mainha nem se alfabetizasse. Antigamente, “mulher que quer ler e escrever, é para mandar carta para o namorado”.

Somado às violências em ambiente escolar, ela era órfã de pai desde cedo, precisou logo trabalhar para ajudar em casa. A minha tia Lurdes, nem o nome pôde aprender. Eu precisava mudar esse curso…

A felicidade no caminho

Concluí o meu ensino médio. E, por incrível que pareça, tentei matemática na UNEB. Sim, eu fiz o meu primeiro vestibular em uma universidade pública, com a isenção na inscrição, e perto de casa. Pedia médias altas e, modéstia à parte, as minhas sempre foram boas. Mas, não deu.

Eu e mainha: OBRIGADO!

Tentei de novo. Ainda não era a hora. Três anos depois, entrei no cursinho Universidade para Todos (UPT), também coordenado pela universidade, em Senhor do Bonfim. Foi pura sorte, porque eu nem me inscrevi, para ser sincera. Um amigo me inscreveu. Ele não passou, mas, eu passei. Vai entender. E assim, meio sem explicação, tudo mudou.

Já era casada, ainda sem filhos, e trabalhava também como manicure. Meu esposo, Manoel Neto, já tinha lidado com roça e, àquela altura, estava vendendo e distribuindo comida. Na luta, ia todas as noites às aulas. E, logo na primeira oportunidade, passei! Agora, em Pedagogia… na UNEB!

Dois meses depois de iniciar as aulas, engravidei do meu primeiro filho, Lucas. Tive que ouvir na cidade: “Agora, quando parir esse menino, vai se aquietar no canto” ou, quando fui fazer a minha ficha no Posto de Saúde: “Estuda na universidade?”, com cara de espanto. Mas, como era que eu ia me aquietar? Quem ia sustentar esse menino? É claro que eu e o pai! Hoje já são dois, temos também o Fernandinho.

Ainda grávida, passei com 100% em um concurso (REDA) do Estado [da Bahia], fui lotada no administrativo da escola em que fiz o magistério, em Senhor do Bonfim. Enquanto isso, nunca fui colocada para baixo por meus professores da universidade: “com 30 dias de parida, esteja aqui!”, escutei várias vezes. Em 2006, passei em primeiro lugar em um novo concurso de Bonfim, para serviços gerais na Defensoria Pública.

A UNEB me acolheu!

A UNEB me ajudou muito nesse processo. Fiz amizades e foram muitos aprendizados, tanto acadêmicos e profissionais, como humanísticos. Não que eu queria resolver todos os problemas do mundo, mas, os que aparecerem em minha frente, eu vou tentar. E, para isso, a graduação me fortaleceu.

Conquistamos juntos!

Passei também em um concurso da cidade de Filadélfia, para a docência. Fui chamada em 2008. A rotina era puxada! Difícil de conciliar… Contei com anjos em minha vida, como os meus chefes da Defensoria e as amizades da universidade. Tudo isso só foi possível por causa com a ajuda deles.

Durante um bom período, o tempo em que tinha com o meu filho era na UNEB. Hoje as pessoas de lá se espantam com o tamanho de Lucas. Cinco anos depois, em 2013, assumi uma vaga efetiva em Senhor do Bonfim. Assinei as cartas de rescisão, dos serviços gerais, e de assunção, como professora, no mesmo dia. Fui para as salas onde estudei, em Tijuaçu, território remanescente quilombola, minha terra.

Uma vez me perguntaram: “Avemaria, mulher, vai abraçar o mundo com as mãos?”. Respondi: “não, mulher, mas, estou estudando. Não quero abraçar o mundo, mas, se ele couber nos meus braços, eu vou abraçá-lo, sim”.

Choveu no sertão

Em 2016, nasce Fernandinho. Passei a ter, ainda mais, como prioridades em nossa vida a Saúde e a Educação. Também por isso, pouco tempo depois mudei para as turmas do Ensino Fundamental II e, três anos para a frente, já me tornei diretora da Escola Municipal de 1° Grau de Tijuaçu, em Senhor do Bonfim, onde estudei.

Eu, os meus e a nossa colheita! Choveu!

Sofri com o racismo em sala de aula. Hoje não permitirei que isso aconteça. A UNEB me deu, também, essa visão de mundo para entender os desafios que enfrento. A minha vida me ensinou que, às vezes, o aluno não tem o sapato ou uma caneta. Por falar nisso, essa caneta foi negada ao meu irmão, há muito tempo.

Olhando para trás, me sentiria feliz se pudesse falar comigo mesma, aos 12 anos: “Eliete, tenha calma. Você vai fugir do curso natural das coisas. Daquela vida sem perspectiva. Então, lhe diria: choveu em sua vida, graças a Deus. E não é a chuva que levou a sua casa. Porque, agora, ela não é mais de taipa. E choveu bastante para você, para os seus e para quem está perto”.

Quando me dizem que eu tenho sorte, costumo responder que sortudos são os meus filhos. As minhas roupas ficavam em caixa de papel duro. Hoje, cada um tem o seu próprio guarda-roupa. Posso dizer todos os dias: “quero que tenham o que eu pude ter”. Porque dona Dejanira conseguiu. Eu consegui!

Prova de que é possível: mainha entrou na Educação de Jovens e Adultos (EJA), e até ganhou um tablet em um concurso de vídeos para o aniversário da cidade. Empolgada com essa nova fase, outro dia ela me disse: “Minha filha, eu quero aprender a ler”. E eu lhe respondi: “Venha, mainha, que eu vou te ensinar…”.

Vídeo vencedor do concurso de Senhor do Bonfim. Conheça dona Dejanira:

*Por Eliete Fagundes e Danilo Oliveira/Ascom

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Histórias como a de Eliete são tipicamente unebianas. Trajetórias tocadas pela educação baiana, transformadas pelo estudo e multiplicadas pela transformação social. Por isso, ao celebrar os seus 38 anos, a UNEB reafirma: o nosso presente é o seu futuro, é o futuro de Eliete, é o futuro de todos, todas e todes nós.