Cacique Babau: cientista da resistência, devoto dos saberes ancestrais e patrono do direito à terra

A história de Rosivaldo Ferreira da Silva, o Cacique Babau, não existe só, enquanto extrato histórico. A trajetória desse líder indígena do sul da Bahia remonta mais de cinco séculos de sucessivos e incessantes movimentos de luta e resistência do povo Tupinambá.

Essa nação originária enfrentou diferentes ofensivasde colonizadores portugueses, holandeses e franceses em território nacional. A partir do reconhecimento da sua força, foram também usados pelo Estado Brasileiro em guerras, como a do Paraguai, e sofreu, ainda assim, com diversas violências estatais e com a criminalização das suas lideranças.

O histórico de brutalidade culminou na fragmentação Tupinambá e na permanente luta pela demarcação e homologação das terras indígenas. E, nesse cenário de não reconhecimento e violação, contrasta-se o empenho militante do Cacique Babau, na defesa incansável dos direitos humanos e da natureza.

“Já falei para ministro da justiça e para outros, pouco importa o que eles fazem ou deixam de fazer. A terra é nossa, nós assumimos e pronto. É no peito, na garra e na guerra. Mas, no tempo organizacional do Estado brasileiro, eles são os violadores”, defende o líder dos Tupinambás da Serra do Padeiro, no município baiano de Buerarema.

O ciclo sucessivo das violências descritas, somado à morosidade do Poder Executivo na condução dos procedimentos demarcatórios, confluiu no espedaçamento da terra indígena, que permanece descontínua, entrecortada por fazendas e outras propriedades menores em posse de não-indígenas.

Passado mais de um século da proclamação da República, metade das terras indígenas do Brasil ainda aguardam demarcação oficial. Consequentemente, os conflitos fundiários se avolumam, assim como a insegurança jurídica desses povos, conforme explica a coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas Intercultural da Temática Indígena (Cepiti) da UNEB, Maria Geovanda Batista.

Terra Tupinambá

As terras tradicionalmente ocupadas pelos Tupinambás do Sul da Bahia compreendem uma área de 47 mil hectares, abrangendo três municípios: Buerarema, Ilhéus e Una.

A Constituição Federal de 1988 prevê, em seu Artigo 231, que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Apesar da garantia constitucional, a nação Tupinambá pressiona o Governo Federal há mais de 10 anos pela portaria declaratória, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, e pela homologação da terra, que deve ser realizada pela Presidência da República.

“O líder só aparece na hora que a defesa do povo é necessária. Porque, de repente, chega alguém dizendo que é dono e que quer isso ou aquilo. Aí você vai procurar reagir para sobreviver, porque sabe que fora dali você não tem vida. Todo o significado da sua história está lá”, destaca Babau.

O território dos antepassados do cacique já foi identificado e delimitado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), ainda em 2009. Entretanto, os quase 5 mil indígenas da região ainda vivem sem o reconhecimento legal das suas terras, conforme registra a professora Geovanda.

Como agravante às intervenções públicas e privadas nesses territórios, a expansão das atividades extrativistas associada ao turismo vem impactando de maneira significativa nas florestas, nos manguezais, nos rios e nos demais ecossistemas costeiros.

Resistência e produção

A comunidade Tupinambá da Serra do Padeiro se destaca entre as maiores produtoras de alimentos do território. Cerca de 80% do que é consumido internamente é plantado e colhido no local.

Para além da autonomia em termos de segurança alimentar e nutricional, essas famílias se orgulham da qualidade da sua farinha e dos derivados (beiju, goma, puba, bolos e pão) e cultivam, ainda, grande variedade de frutas e legumes, como banana, abacaxi, feijão, milho, quiabo, inhame, abóbora e girassol, abastecendo também mercados da região.

“Essa é uma economia de reciprocidade, próxima da economia popular solidária. E o que entra em jogo aqui, entre as elites locais e regionais, é o desconforto que sentem quando o indígena aparece como protagonista, e não como um mendicante, necessitado ou carente, nesta rotulagem que se dá aos mais pobres”, avalia a professora Maria Geovanda.

A análise é endossada pelo Cacique Babau, que atribui ainda muitos dos impasses e conflitos na região aos interesses pela exploração das terras, que deveriam estar protegidas, e à contrariedade provocada pelo desenvolvimento local.

“É claro que vamos continuar sofrendo ameaças. Porque o contexto da luta tupinambá é modificador. Nós trouxemos uma escola, e incluímos todos os pequenos pobres. A renda melhorou com a educação. Ninguém precisa vender voto e nem pedir nada a vereador. É claro que eu incomodei e estou incomodando, dando possibilidades”, ressalta a liderança.

A partir de articulações políticas e investimentos próprios, a comunidade da Serra do Padeiro conquistou recentemente um trator arado, uma retroescavadeira e uma caçamba. Os equipamentos estão disponíveis para os indígenas e também para os pequenos produtores do entorno, com a possibilidade de aluguéis mais acessíveis.

De posse desses recursos, já foi possível a melhoria das estradas da região, a redução das queimadas para o plantio e a realização da coleta seletiva do lixo local. “Então, modificamos a região. E modificar traz enfrentamento político. Porque você começa a competir com os políticos locais”, ressalta o cacique.

Formação política e liderança

A convite do seu avô, o pajé João de Nô, Babau e sua irmã foram aprender com a “escola do branco”. Ele fez parte da primeira geração de jovens indígenas de uma família Tupinambá que pôde usufruir do direito à educação formal, dos direitos indígenas e demais conquistas previstas na Constituição Federal de 1988, após mais de 500 anos de sua negação.

De acordo com o cacique, os encantados – divindades cultuadas pela comunidade – se manifestaram ainda em 1995, e solicitaram que o povo se preparasse para uma batalha que estava para chegar.

“Os povos indígenas estavam muito fracionados. Os tupinambás precisavam dizer que permaneciam vivos. Em 2000, nos levantamos, peitamos Funai e fomos exigir a demarcação. Passaram mais de sete anos brigando com Serra do Padeiro, porque dissemos que somos autônomos e que não dependíamos da ordem deles em nosso território”, conta Babau.

Em 2003, após novas orientações dos encantados e anuência da comunidade, ele se tornou cacique na Serra do Padeiro. A partir de 2006, passou a conquistar maior atenção da imprensa e notoriedade no cenário nacional e internacional, sobretudo, com as denúncias apresentadas. Outro fator importante para aumentar a visibilidade das demandas indígenas foram as “retomadas”, processos litigiosos de recuperação, pelos povos originários, de áreas ocupadas por não-indígenas.

Neste ponto, a trajetória de Babau passou a ser marcada por sucessivos processos de difamação e encarceramentos. Em uma conjuntura estendida em que a criminalização de lideranças dos movimentos sociais indígenas, negros, afroindígenas e populares já começava a preocupar setores da sociedade e militantes dos direitos humanos.

Em uma de suas prisões, a sua mãe, Maria da Glória de Jesus, conversou com jornalistas: “Acabaram com nossas matas, com nossas árvores, com nossos peixes, acabaram com tudo, e hoje querem destruir o índio. O índio vai morrer e ficar dentro da aldeia, ninguém vai tirar não! O cacique tá preso, mas, tá preso o corpo, o espírito dele tá livre, tá vivo dentro de nós. Todo mundo junto aqui é Babau. É Babau junto”.

A professora Geovanda explica que, junto aos processos e prisões, passaram a ser desencadeados, sucessivamente, por setores das dominantes da região – compostos por ruralistas locais, fazendeiros, empresários dos ramos do agronegócio e do turismo; políticos, agentes públicos e da imprensa -, reforços de estigmas, estereótipos, preconceitos resultaram em rejeição aos indígenas que vivem na Serra do Padeiro.

Violências Estatais

Após diversos embates com os braços armados do estado brasileiro em defesa do legado tupinambá e da permanência em suas terras, Cacique Babau é taxativo: o Exército daqui é o mais perigoso de toda a América do Sul, porque ataca a moral e a dignidade dos que se opõem às suas práticas.

“Quando matam o corpo, a alma está forte, o seu legado está forte. E as pessoas vão à luta. Mas, quando te acusam de ladrão sem você poder provar que você não é nada daquilo, mata a sua alma, o seu espírito”, explica o líder, registrando que, sobretudo durante o período da Ditadura Militar, esse foi o expediente adotado. Muitos pajés foram mortos e nações esfaceladas.

Para além das violências físicas e simbólicas seculares, o pesquisador da UNEB José Augusto Laranjeiras Sampaio, que é também membro do Conselho Diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), destacou outros ataques às populações indígenas, em entrevista ao site Brasil 247.

Dentre eles, está a tese do “Marco Temporal”, defendida pelo Projeto de Lei (PL) 490/2007, que determina que são terras indígenas aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988.

“Não bastasse a paralisação dos processos de demarcação, mesmo as terras já demarcadas e garantidas estão sendo invadidas por estarem absolutamente desprotegidas; e desprotegidas de modo deliberado. É como se, diante de uma possível maior dificuldade em se reverter os direitos conquistados pelos indígenas no plano jurídico-legal, simplesmente se investe no descumprimento da Lei”, avalia o docente.

Ainda sobre essas ofensivas contra os povos originários, a professora Maria Geovanda Batista destaca a Instrução Normativa 9/2020, da Funai, que implicava em alterações no sistema de gestão fundiária, inclusive, em territórios ocupados por indígenas.

“Ela fere frontalmente o Parágrafo 6º, do Artigo 231 da Constituição Federal, que diz serem nulos todas as doações e títulos de terra que estejam sobrepostos às terras indígenas. A Funai tem se demonstrado muito mais preocupada em garantir uma suposta propriedade em litígio, no interior de uma terra de uso coletivo, do que fazer a defesa para a qual ela foi criada e que justifica a sua existência”, frisa a docente.

Para o Cacique Babau, todos esses dispositivos são opressores e fazem parte de um marketing político monstruoso e genocida: “se a gente tem uma Constituição no país, nenhuma lei pode ser maior do que ela. Então, a Funai não pode criar regras desse nível. O problema do parlamento brasileiro é que ele tenta criar fatos para desviar a luta, convencer a sociedade brasileira a ficar contra as comunidades indígenas”.

Ele segue dizendo que se houvesse desejo real de regulamentação, um caminho seria a proposição de alterações na Lei 6001/73, que dispõe sobre o Estatuto do Índio. O líder, entretanto, sinaliza que não acredita que isso não vá acontecer, porque há muitos anos não se discute. Quando discutido pela última vez, emperrou no debate sobre mineração em território indígena: “querem tudo, sem dar nada em troca”.

Reconhecimento!

Cacique Babau afirma que se aproximou das instituições de ensino superior (IES), sobretudo, quando o Governo do Estado da Bahia criou o Conselho Estadual da Escola Indígena. Assim, logo foi para a linha de frente das defesas pela Educação Indígena no país, e entrou em contato com pesquisadores da UNEB.

“Quando a universidade resolve trazer a sua tecnologia para juntar aos conhecimentos tradicionais, sem um violar o outro, isso é muito bom! Vai realmente combater as desigualdades”, afirma o líder indígena.

Esses laços se fortaleceram em eventos, visitas e trabalhos colaborativos. E, neste mês de junho, em que se comemoram os 38 anos da UNEB, a instituição vai encerrar as suas celebrações com a cerimônia de outorga do título de Doutor Honoris Causa da universidade para o Cacique Babau.

“Mais uma vez, a UNEB está na vanguarda desse processo de reconhecimento, que está dentro das políticas afirmativas que atravessam a nossa universidade. Parabéns, Cacique Babau! Parabéns, povo Tupinambá! Se nos recusarmos a pensar no indígena, ignoramos por completo o que somos, o que nos tornamos e o que queremos ser”, destaca a professora Geovanda, que liderou o grupo de trabalho (GT) responsável por subsidiar a homenagem.

Para a cerimônia, a irmã do cacique, Glicéria, confeccionou um manto especial, que irá vesti-lo de toda a força da luta, da terra e dos pássaros. Fortalecendo-o com “toda a sabedoria e a energia da natureza, com esse olhar do tempo contemporâneo. A universidade está de parabéns e a gente agradece muito por esse reconhecimento da nossa luta. Kuekatu reté (muito obrigado)”.

Mesmo após tantos anos de liderança e luta, Cacique Babau continua a se considerar apenas mais um integrante da sua comunidade. Mas, o seu reconhecimento extrapola nações e representações, conforme explica Agnaldo Pataxó Hã Hãe, atual coordenador geral do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba).

“O Cacique Babau tem uma importância muito grande para o povo Tupinambá de modo geral, para o povo indígena da Bahia e do Brasil. Esse é um reconhecimento de valores dos nossos povos, de que nós estamos fazendo a resistência correta, a defesa da vida. É um divisor de águas, porque é a valorização da maneira de ver o mundo pela filosofia do bem viver”, registra Agnaldo.

A UNEB ao homenagear este líder, o faz para um povo inteiro, para os seus antepassados, para os antepassados do povo brasileiro. Iniciativa especialmente simbólica, enquanto o PL 490/2007 avança pelas casas legislativas.  Reitera-se, assim, o evidente direito indígena pela demarcação das suas terras. Este é um compromisso desta universidade com a democracia e a igualdade de condições e de direitos entre os povos.

Fotos: Acervo Pessoal/Cacique Babau, Escola Estadual Indígena Tupinamba Serra do Padeiro, Ascom/Conselho Indigenista Missionário, Cindi Rios/Ascom e Glicéria Tupinambá

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O Cacique Babau e a UNEB

Cerimônia de Outorga do Título de Doutor Honoris Causa:
UNEB concede título Doutor Honoris Causa ao Cacique Babau Tupinambá nesta quarta (30), 19h

Podcast “Fala, Balbúrdia!”:
Ciência da Resistência: a trajetória do Cacique Babau e a luta pelo direito à terra
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