Eu Existo, Eu Resisto: UNEB pauta debate institucional sobre Mês de Visibilidade Trans

UNEB lança campanha “Visibilidade Trans: Eu Existe, Eu Resisto”. Arte de Anderson Freire/Ascom

Eu aprendi a lutar na força do ódio”. “Sei o quanto o meu corpo representa, mas, ele incomoda”. “A dor é necessária, mas, o sofrimento não. E esse sofrimento eu não quero nutrir na minha vida”. “A dor me engajou para estar aqui hoje”.

Essas poderiam ser palavras destes que vos escrevem, mas, não são. Poderiam ser suas (e talvez sejam), mas, há fortes imposições estatísticas que nos mostram um cenário improvável. E essas constatações são motivadas pelas violências que persistem. Essas são frases que usualmente não recebem crédito, não possuem vez e, portanto, não tocam muitos e muitas.

Ciente dessa realidade perversa, e frontalmente contrária às diferentes formas de preconceito e opressão, a UNEB participa do Mês de Visibilidade Trans e, com deferência, traz esses desabafos e outras reflexões da discente Thiffany Odara, do Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc) da instituição.

Thiffany Odara: “Sei o quanto o meu corpo representa, mas, ele incomoda”

Pedagoga e mestranda, ela é uma mulher trans, ialorixá e autora do livro “Pedagogia da Desobediência: Travestilizando a Educação”. Na última sexta-feira (27), foi lançado o primeiro episódio da terceira temporada do podcast “Fala, Balbúrdia!”, da universidade, que contou com protagonismo de Thiffany e com o tema “Visibilidade Trans: Eu Existo, Eu Resisto!” (ouça aqui na íntegra).  

“A gente sabe que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, e que antes dessa morte existe um processo em que essas pessoas são colocadas em situação de vulnerabilidade. Como a assistência social do Brasil está para essa população? Não tem! Até então, o governo nunca colocou as pessoas trans no censo, é importante para se refletir, porque isso gera políticas públicas, que só acontecem com números”, destaca a convidada.

Ela reforça que os poucos números que se têm sobre a vida dessas pessoas seguem sendo levantados por associações e entidades como a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), que em seu último relatório anual apontou que, pelo décimo quarto ano seguido, o país é o que, de fato, registra mais assassinatos contra essa população em todo o planeta.

A maior parte das vítimas tinha entre 18 e 29 anos, sendo o Nordeste o mais violento do país. Em 2022, 40,5% dos casos de homicídio foram computados na região. Enquanto isso, a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil segue na faixa dos 35 anos. Esses são alguns dos dados que motivam as constatações iniciais deste texto.

Para além do impacto da insegurança pública para essas pessoas no país, Thiffany frisa que apenas profundas crises éticas, políticas e sociais foram capazes de visibilizar a saúde e a vida trans e travesti: “tem uma frase da Keila Simpson, que está no livro Pedagogia da Desobediência, que diz que a Aids praticamente pare o movimento de travestis, porque é no boom do HIV/Aids que o estado é encurralado para pensar mesmo o que ele vai fazer com essa população”.

Corpos que educam e deseducam

“A violência no Brasil para pessoas trans e travestis não acontece só de maneira física, mas, simbolicamente, diariamente. Precisamos inserir as pessoas trans não só nas nossas pesquisas acadêmicas, mas, elas precisam ocupar espaços estratégicos, que nos permitam participar da elaboração das políticas públicas, produzir conhecimento”, avalia Thiffany, ao tempo em que celebra a assunção da Secretaria Nacional dos Direitos da População LGBTQIA+ por Symmy Larrat.

Thiffany: Travestilizar a Educação é transgredir

O discurso da pesquisadora se associa à sua defesa intelectual do conceito da “pedagogia da desobediência”, em uma conjuntura na qual estima-se que cerca de 70% das pessoas trans não concluiu o ensino médio e que apenas 0,02% encontram-se no ensino superior, de acordo com o último levantamento da Antra sobre o tema.

“É a luta da travesti pelos não lugares para os quais somos empurradas. A gente precisa entender que o corpo das travestis é um corpo que educa, e é um corpo que pode deseducar esse sistema, que é de exclusão social. Então, a pedagogia da desobediência é essa proposta de pensar uma nova proposta de educação que inclua não somente as travestis, mas, que possa incluir todos e todas aqueles e aquelas que são excluídos e desfavorecidos por esse sistema escroto e falido, pensado a partir de uma ordem colonial, cis, heterossexual e eurocêtrica”, explica.

Thifanny ingressou no curso de Pedagogia ofertado pelo Campus Avançado da UNEB, em Lauro de Freitas, em 2011, a instituição consolidou, após aprovação do Conselho Universitário (Consu), instância máxima deliberativa da universidade, o uso do nome social pela comunidade três anos depois.

“Quando acessei, não tinha nome social. Entrei utilizando o nome pelo qual eu não me reconhecia. Não estou só criticando, mas, é para a gente refletir. Porque sei que estamos em uma nova gestão, mas, eu estou falando de 2011, e olhe quanta coisa melhorou, avançou na UNEB, muitas coisas. Mas eu estou trazendo uma reflexão porque as vezes a gente não se dá conta, está tão inserido na gente”, salienta a atual mestranda.

Recomendamos a leitura:

Pedagogia da Desobediência: Travestilizando a Educação (Thifanny Odara)

A Quem Interessa Minha Dor? Travestis Negra em Primeira Pessoa (Thifanny Odara)

Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileira em 2021 (Bruna Benevides – Antra)

A UNEB e as Políticas de Ações Afirmativas

Com histórico de engajamento de todos os segmentos da comunidade universitária para a consolidação de políticas institucionais de Ações Afirmativas, a UNEB possui vocação para a inclusão.

Em 2014, a partir da Resolução Nº 1.094 do Consu, aprovou a utilização do nome social para reconhecimento da identidade de gênero no âmbito da universidade, e consolidou a própria Pró-Reitoria de Ações Afirmativas (Proaf), através da Resolução Nº 1023/2014, do mesmo conselho.

Marco: “A forma como você se trata, é o seu reconhecimento enquanto ser social”

O processo contou com a participação de diversos pesquisadores dos diferentes departamentos da instituição, como da equipe do Centro de Estudos em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade (Cegres/Diadorim), conforme explica o professor Marco Simões:

“O Diadorim já vinha discutindo proposta para implantação do nome social em 2012. Mas o debate se acentuou em 2013, quando o CEE formula a Resolução 120/2013, que dispõe sobre inclusão dos nomes sociais das estudantes travestis e transexuais nos registros acadêmicos nas instituições do Sistema de Ensino do Estado da Bahia. Então, em 2014, o Diadorim encampou essa proposta e encaminhou essa resolução para o Consu”, conta o docente da instituição.

Sobre a importância dessa matéria, o pesquisador destaca que o nome é a própria representação dos sujeitos, “a forma como você se trata, é o seu reconhecimento enquanto ser social. Então, reconhecer a forma como os sujeitos trans e travestis reinvidicam para si, é reconhecer esses sujeitos políticos, a sua existência e o seu direito a um tratamento justo e digno no âmbito da nossa instituição”.

Em 2018, em nova ação de vanguarda, a UNEB e o seu Conselho Universitário aprovaram a ampliação do Sistema de Cotas para contemplar, com sobrevagas, novas populações histórica e socialmente excluídas, dentre elas, pessoas trans e travestis.

“A UNEB é uma universidade democrática e qualificada, mas que, acima de tudo, busca acolher e garantir o acesso de uma série de grupos e segmentos que foram social e historicamente excluídos, nós somos uma universidade de todos, do povo, de todos e todas as baianas, independente da sua cor, da sua orientação sexual e etnia, nós somos uma universidade da inclusão”, afirma Marco.

No último dia 6 de janeiro, outra ação institucional conferiu maior precisão às possibilidades de uso do nome social na vida acadêmica e funcional da comunidade universitária.

Adriana: “Garantia de direitos e o incansável combate às violências”

“Possuímos o compromisso, enquanto gestão e sociedade, de cuidar da UNEB e das pessoas que dela participam, que a transformam e são transformadas por ela. É fundamental garantir o ingresso e a permanência qualificada de pessoas trans, travestis e transgêneras, e seguir pautando uma mudança atitudinal em todos os nossos espaços, dentro e fora do Janeiro de Visibilidade Trans, para a garantia de direitos e combate às violências”, afirma a reitora da UNEB, professora Adriana Marmori.

A gestora, que também participou de diversos debates sobre Ações Afirmativas na instituição enquanto conselheira e, agora, presidente do Consu, salienta que um programa de formação específico para a valorização da diversidade e combate às discriminações dentro da universidade está em processo avançado de construção e deve ser submetido para apreciação do conselho neste ano.

Pró-Reitor de Ações Afirmativas (Proaf) da UNEB, Marcelo Pinto informa que de acordo com os registros acadêmicos, em agosto de 2022, 67 estudantes da instituição são travestis, transexuais e transgêneras.

Marcelo: garantir reserva de bolsas e oportunidades nas ações intitucionais para essas pessoas

O gestor garante que continuarão sendo empreendidos esforços institucionais para garantia mínima das bolsas do Programa AFIRMATIVA e das oportunidades em todos os outros editais ou atividades que a Proaf vá gerenciar para essas discentes.

O Mês da Visibilidade Trans é celebrado anualmente em janeiro, com especial destaque ao dia 29. A data é motivada por uma mobilização ocorrida em 2004 na Câmara dos Deputados, por meio da campanha “Travesti e Respeito” – liderada por ativistas da comunidade trans em parceria com o Ministério da Saúde.

As ações em alusão à data buscam promover debates e mobilizar a sociedade para a importância da visibilidade, representatividade e luta por acesso à saúde, à educação, à geração de emprego e renda e ao enfrentamento ao preconceito e à discriminação.

Texto: Danilo Oliveira e Danilo Cordeiro
Fotos: Ascom/UNEB e Acervo Pessoal