Ascom Entrevista: Núbia Reis “A geopolitização da vacina indica a ausência dos direitos humanos como padrão normativo nas decisões sobre a pandemia”

 

Núbia Reis, cientista social

A Assessoria de Comunicação (Ascom) convidou a professora da UNEB Núbia Reis, cientista social, especialista em ciências políticas, sociologia e direitos humanos para um bate-papo reflexivo sobre a condição humana em tempos pandêmicos, com destaque para as graves e frequentes violações dos direitos humanos durante a tragédia sanitária que vivemos atualmente, sobretudo, no Brasil.

Nesse bate-papo, Núbia aborda dilemas éticos contemporâneos, que perpassam a geopolitização da vacina, vigilância social digital e o isolamento nacionalista das grandes nações frente a essa crise societária universal.

Essa entrevista é um convite à reflexão sobre os desafios para garantia dos direitos humanos em tempos pandêmicos.

Assessoria de Comunicação (Ascom): A pandemia nos colocou frente a frente com diversos dilemas éticos. A vigilância dos cidadãos é um exemplo polêmico. Os governos estão usando o vírus como cobertura para introduzir uma vigilância digital invasiva ou generalizada, como é o caso da China, que utiliza o sistema de vigilância de dados para rastrear cidadãos online e offline. Que avaliação você faz desse cenário? Perigo à vista ou solução estratégica de combate ao vírus?

Núbia Reis: A vigilância social digital não é uma novidade trazida pela pandemia nem é uma exclusividade do governo chinês. Mesmo antes da pandemia, ela era amplamente utilizada como recurso político estratégico e isso independe se o regime político é mais ou menos democrático. De maneira geral, todos os países centrais e, em alguma medida os periféricos, usaram do expediente da vigilância digital para o controle sanitário da disseminação do vírus dentro e fora das suas fronteiras. Israel, por exemplo, anualmente gasta bilhões de dólares com vigilância digital ultrassofisticada como estratégia para a sua segurança, bem como para controle no comportamento dos seus cidadãos na pandemia. Aqui em Salvador, a prefeitura controla a disseminação do vírus a partir de câmeras termais instaladas na estação de transbordo. A economia política de vigilância se situa na tênue fronteira entre os direitos individuais e os direitos coletivos e difusos. Não é uma equação fácil de resolver. Ainda que possa ter fins coletivos, seus excessos são de difícil controle público e violam frontalmente os direitos individuais.  Por isso, os defensores dos direitos humanos reivindicam um esforço global para o controle civil e político, em nível  nacional e transnacional, do uso desses dados para outros fins que não ultrapassem o controle da pandemia.

ASCOM: Pensando em nosso futuro pós-pandemia, qual o impacto dessas ações na manutenção direitos humanos?

Núbia Reis: Bom, eu acho que pós-pandemia é ainda um lugar distante. Eu penso na proteção dos direitos humanos no aqui e agora. A OMS tenta assegurar acesso às vacinas e aos equipamentos de proteção para os países periféricos e mais pobres. A possibilidade de quebra de patente é uma luz no fim do túnel. A questão que se apresenta é qual a efetividade e eficácia dessas ações em curto e médio prazo, pois o vírus parece não respeitar o binômio tempo/espaço da ação política. A resposta a essa questão me parece ser indicativa da “manutenção” dos direitos humanos como marco civilizatório.

ASCOM: A pandemia pode ser um marco importante na história da vigilância?

Núbia Reis: Eu não colocaria nestes termos. A pandemia é um evento que potencializou a vigilância, mas ela já fazia parte da nossa realidade social de muito tempo. Não podemos esquecer o vazamento de documentos e informações confidenciais (inclusive da ex-presidente Dilma foi uma alvo) pelo WikiLeaks  e as denúncias de Snowden sobre o sistema de vigilância global da NASA dos Estados Unidos. Nós deixamos registros digitais mesmo quando não acessamos diretamente computadores ou smartphones. O mais grave nessa história é que esses dados, além de não ter controle estatal ou civil, eles foram usados para definir realidades políticas como as eleições de Trump nos Estados Unidos, em 2016.

ASCOM: Outro dilema ético manifesto é a geopolitização da vacina. Interesses comerciais, disputas históricas entre laboratórios e grandes potências econômicas mundiais. O cenário é caótico e hostil. Os países mais ricos e com maior acesso a tecnologia garantiram logo as suas doses.  Assistimos, por exemplo, nações como o Canadá, ostentar cinco vezes mais doses de vacina do que o necessário para vacinar seus habitantes, enquanto países mais pobres definham e apresentam números alarmantes de óbitos por Covid-19. Do ponto de vista dos direitos humanos o que isso significa?

Núbia Reis: Por um lado, indica a ausência dos direitos humanos como padrão normativo, sociorrelacional e ético-político nas decisões sobre a pandemia. Por outro, é uma excelente oportunidade para testar o poder social dos direitos humanos como pilar civilizatório. Os países centrais que controlam os investimentos, a produção e a distribuição das vacinas têm uma excelente oportunidade para provar que os direitos humanos não são meros recursos retóricos normativos, políticos e morais.

ASCOM: Você acha possível vencer esse vírus com essa postura de isolamento nacionalista ou a cooperação solidária seria o caminho?

Núbia Reis: Racionalmente, todos os caminhos apontam que a cooperação solidaria seria a melhor via para vencer a pandemia. No plano político e pragmático, temos muitos interesses em jogo que não podemos reduzir a um “isolamento nacionalista”. Neste caso, os interesses econômicos sobrepõem claramente os interesses sociais. Mas, a dinâmica do vírus é um teste para a sobrevivência do sistema neoliberal e seu fetiche pelo mercado como  “agência” política e social.

ASCOM: Sei que é impossível prever o que virá, mas, considerando a sua área de estudo e empirismo, quando você fecha os olhos e pensa no futuro, o que vê?

Núbia Reis: Olhando para o Brasil, que e a realidade que vivo, eu vislumbro que teremos muito trabalho para a reconstrução dos direitos humanos como um pilar civilizatório. No caso da pandemia, nós temos o negacionismo, a descrença na ciência, pouco investimento em tecnologia; redução do financiamento das universidades; indicação de medicamento de eficácia não comprovada para tratamento precoce da doença; a compra tardia e insuficiente da vacina pelo governo federal em uma pandemia que já matou quase 450 mil brasileiros (até o presente momento). Por outro, é possível observar um desmonte institucional e um ataque discursivo de autoridades relevantes na cena política na tentativa de ressignificação dos direitos humanos em padrões poucos democráticos e pouco inclusivos. Neste cenário, os grupos historicamente vulnerabilizados – mulheres, negros, LGBTQIA+, indígenas, defensores dos direitos humanos e do meio ambiente etc. – têm seus direitos atacados, bem como vivemos sob os auspicio de uma narrativa da ditadura militar como uma revolução social. Enfim, temos muito trabalho pela frente.

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Núbia Reis (ver currículo lattes) é fonte da nossa primeira edição da Reportagem de Capa Pandemia e condição humana: que futuro estamos desenhando para a humanidade?. Já conferiu? Clica aqui e nos acompanhe nessa jornada reflexiva sobre o desenho civilizatório que estamos rascunhando para o nosso amanhã.