Respeitem meu filá e o branco de Kailane (Gildeci Leite)

Gildeci de Oliveira Leite
Escritor e professor da UNEB
Assessor de Projetos Interinstitucionais para a Difusão Cultural (Apidic) da UNEB

Um dia me criticaram por estar usando meu filá. Outra vez me chamaram de palhaço, pois eu usava meu filá. Acharam-me desengonçado: em vez do capelo, aquele chapéu utilizado em formaturas, eu me protegia com o meu filá. Sem falar das vezes que uso terno e filá. O filá é um gorro que usam em países muçulmanos e nós em religiões de axé. Gosto do filá comprido, lembra o gorro de um saci, o menino negro tão injustiçado, que nos ensinaram a temer suas travessuras. Olhem, não tenho medo de usar o meu filá, já fiz poesia sobre o constrangimento que passei. Penso agora na menina Kailane Campos que foi agredida por ser de candomblé. Provavelmente os agressores, sem culpa, sem necessidade de desculpa, pensaram que estavam esmagando a cabeça da serpente ou o próprio diabo. Lembro de algumas vezes ao chegar no trabalho e manifestarem risos por minha homenagem e respeito a Obatalá, Oxalá, o senhor do pano branco. Subia o Alto da Boa Vista, as escadas da Uneb e risos de canto de boca circundavam-me.

Foi axé, convenci por encanto. Em algumas semanas, alunos e alunas vestiam branco. Seria somente por agrado ou será que cantavam para mim uma espécie de acalanto? Foi uma homenagem, uma resposta coletiva ao preconceito que sofria. Outro dia, bem mais distante daquela primeira década dos anos 2000 de Seabra, próximo do hoje, uma colega quase não conseguiu disfarçar o riso, a chacota. Foi ridicularizada por ela mesma. Imaginem que até mãe de namorada já havia implicado comigo por minha fé, por ter orixás comigo. Namoramos até quando tínhamos que namorar, mas meus orixás, meu ori, meu juntó, meu eledá, meus ancestrais, meus caboclos e caboclas não posso, nem quero largar, estão dentro de mim.

Essas histórias como a da menina Kailane Campos não se iniciaram aqui. Estratégia antiga, essa de diabolizar o outro. Para gente assim, cheia de preconceito, o diabo é sempre aquele do qual eles querem alguma coisa. Querem a nossa felicidade de viver e principalmente o resultado de nossa força de trabalho, nosso suor e nossos ganhos. Todos já percebemos que a convertidos impõe-se uma nova maneira de vestir, sorrir, viver, direcionam os gostos e investimentos para determinado lugar. Tanto ódio assim tem na verdade uma disputa de mercado, um totalitarismo cruel em busca de uma superioridade inexistente.

Sei que há muita gente que só reproduz as ordens dos chefes de rebanhos e na maioria das vezes até esses pseudochefes se acham tão imbuídos da verdade e de uma santa missão higienizadora que aceitam as migalhas do poder para tentar destruir o outro. Há exceções! Entrego todos a Exu, Ogum, Xangô, Oxóssi, Omolu, Iansã, Oxum, Nanã, Iemanjá, Oxumarê, a todos os orixás, inquices, voduns, ancestrais, caboclos. Alguém pode estar dizendo “viu como eles são do mal?”. Oxente, desde quando entregar as decisões às deidades negras se caracteriza malefício? Entendi, acham que somente deidades brancas são benéficas. O preconceito começa por aí! Nos deixem em paz, levem seu diabo com vocês, ele é um deus cristão. Estou sempre por aqui aberto à alegria e à amizade, mas respeitem minha fé e o meu filá. Se quiserem a minha amizade, saibam que minha fé vai junto! Axé!

Publicado na edição do dia 30 de junho do Jornal A Tarde

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