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A crise do homem e a crise do homem negro (Sérgio São Bernardo)

Sérgio São Bernardo
Professor da UNEB, membro da OAB-BA

Recentemente, em um evento da ESA OAB-Ba, em que discutíamos o impacto da luta internacional contra a discriminação racial e seus reflexos no Brasil, acabamos por caminhar pelo tema do empoderamento da mulher negra e no que isso implicaria para um necessário debate de gênero entre homens negros e mulheres negras.

A constatação era de que tínhamos uma agenda ainda não profundamente debatida sobre a permanência do racismo anti-negro, como um fenômeno discriminatório nefastamente praticado em todo o mundo, e o ainda persistente machismo praticado por homens brancos e negros sobre a mulher negra. Tudo isso impactado sobre a constatação de que, nesse cenário, o homem negro também se constituía numa vítima sistêmica em face de uma insidiosa brutalização do seu papel social que o coloca numa situação de desaparecimento físico orquestrado pelo aumento do genocídio contra a população negra no Brasil.

Essa é uma discussão que devemos colocar num horizonte de empatia e solidariedade políticas mútuas. Devemos reconhecer que a mulher negra tem sofrido ao longo dos séculos uma situação de subjugação histórica, praticada por homens e mulheres brancas e também, por homens negros. O homem negro, em geral, é cobrado para manter-se focado no desempenho da sua masculinidade, hipersexualidade, desempenho social e laborial, e isso o aproxima de uma prática que diminui a sua humanidade e o coloca numa panaceia de vulnerabilidades e agressões no seu núcleo social e familiar. Outro assunto que tem suscitado diversas polêmicas e tensões é aquele que trata das relações afetivas inter-raciais. De lado a lado, as preferências quase sempre mencionam as “ausências” do homem negro ou da mulher negra, ou ainda a necessidade de se ampliar o assunto para o campo da “raça humana” para justificar as suas predileções.

Nesse contexto, entramos em um universo sensível já que sabemos que tanto a masculinidade, quanto a feminilidade, são práticas socialmente construídas, e que estamos num momento salutar para este diálogo, potencializado pelas discussões trazidas por Lélia Gonzalez, Sobunfu Somè, Oyèrónkẹ Oyěwùmí, Nah Dove, Gisleine Aparecida dos Santos, Katiúscia Ribeiro, Karla Akotirene, Anin Urasse, etc, sobre a natureza colonial da questão de gênero e de como nos rendemos a este modelo que pouco nos diz para uma futura emancipação isonômica de homens e mulheres.

Para o “mundo masculino” o sexo é visto ao mesmo tempo como um direito, uma necessidade e uma obrigação enquanto homem idealizado. Pondero aqui ainda a insuficiência da expressão “homem negro” e “mulher negra” para localizarmos as manifestações de gênero e sexualidade que marcam corpos diversos e singulares para além da heteronormatividade. Nesse contexto, quase tudo que estamos refletindo aqui não seria inteiramente apropriado para pessoas negras homossexuais ou com outra orientação sexual.

Dai, a nossa indagação: Quais discursos emancipatórios devem compor uma agenda para libertar-nos, homens e mulheres negras, dessa dupla opressão? Queremos mais poder e reconhecimento, mas a busca pelo poder e reconhecimento nos trai, nos revela e nos desnuda, até porque, confrontamo-nos com o machismo quando idealizamos relações alternativas e estamos mais solitários e sozinhos mesmo com as intensas atividades sociais que desempenhamos. Hoje, já percebemos algumas tímidas e expressivas iniciativas de homens dialogando entre si e entre as mulheres sobre o assunto do gênero e de como podemos tratar disso sem medo, omissão e revanchismo.

Os valores da maternidade, paternidade, família e papéis sociais comunitários ganham relevo nessa nova forma de pensarmos e praticarmos a sociedade contemporânea da condição humana negra nesse momento do mundo. Mas o desafio é por encontrar valores e ações que localizam homens e mulheres fora do contexto moral do mundo capitalista, machista e racista, e podermos nutrir a necessidade de reorganizarmos os papéis sociais e sexuais entre homem e mulher negras e outras identidades de gênero e sexualidades em novas dimensões étnico-político e sociais.

O homem é jogado a realizar um papel de completa auto sustentação simuladora, por isso, o homem está em crise e o homem negro está em crise e brutalizado. Somos seres fora do lugar e não temos força, sozinhos, para mudar esta tendência estrutural. A mulher negra tem vivido com mais intensidade as mudanças dos tempos e tem se labutado com muito mais capacidade de entender estas complexidades e, de lambuja, tem confrontado muitos homens negros a se libertarem da sua agonia negra prometeica de poder fazer mais do que podem e conseguem!

Para UNEB, Lucas de Matos (2021)

Poesia de autoria de: Lucas de Matos*


Mais do que a estrada, a bússola e o mapa
Mais do que a resposta, a dúvida e a sacada
Mais do que o sapato firme para a caminhada
O conhecimento me deu asa

E foi justamente nessa casa
Que desaprendi a andar
Na mesma estrada antiga e no mesmo passo

Digo que ela me deu compasso, régua e esquadro
Pra desenhar um novo traçado
De existência, cidadania e formação

O aprendizado estava na sala, na fala e na ação
No sarau no Bolo de Noiva
Na cantina de Seu João
Na sombra daquele verde
Onde escrevi tanto verso

O pensamento multidisciplinar, complexo
A passear por variados saberes
De gente tão igual, tão diferente
Compartilhando visões de mundo nesse quilombo educacional

Vem daí minha formação social
Acadêmica, poética e existencial
Eu vim de um lugar de luta  amalgamada na sabedoria
Eu vim da Universidade do Estado da Bahia


Para UNEB,
Lucas de Matos
2021
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*Comunicador e poeta soteropolitano, Lucas de Matos tem formação em Relações Públicas pela UNEB, e atua na área da poesia escrita e falada desde 2014, por meio da produção de saraus. Produziu o Sarau Arte Livre (2014-2018), o Sarau Quartas Poéticas (2019) e o Sarau do Benin (2021).

Integra a Antologia Terra (2021) com o poema ‘Falta’. Produz vídeo-poesia e é o idealizador do Projeto Quartas Poéticas, disponível em seu canal oficial do Youtube.

Criminalidade e violência (Jorge Matos e Maria Izabel Matos)

Criminalidade e violência:
um olhar sobre a pena de morte e a prisão perpétua

Artigo de autoria de:
MATOS, Jorge Luiz Maltez de *
MATOS, Maria Izabel Freitas Santos de **

A pena de morte e a prisão perpétua vêm se constituindo em um dos mais instigantes debates que agitam a sociedade brasileira, em praticamente todos os setores, especialmente quando a mesma está associado à criminalidade – violência – crimes hediondos.

Dessarte, em sociedades onde a violência vêm se alastrando, em ritmo crescente, nas distintas esferas sociais – a ineficácia do Estado frente ao combate à violência e ao aumento progressivo da criminalidade – tem contribuído de modo significativo para suscitar – nos mais variados extratos sociais o pressuposto de que,somente através da aplicação de penas mais rigorosas para os graves delitos é que de fato a sociedade encontraria novo equilíbrio no ideal de justiça.

Renunciar a um entendimento acerca dessa problemática, em profundidade – implica – indubitavelmente – a um futuro profissional do Direito, abrir mão da possibilidade de identificá-la, analisá-la e interpretá-la à luz do âmbito jurídico, mas, também, dos fatores subjacentes aos seus efeitos na sociedade e ao tão desejável propósito – o alcance do ideal de justiça.

Bobbio (2004), aponta que o primeiro questionamento sobre a pena de morte no mundo, surgiu apenas em 1764, com o escritor César Beccaria, cuja obra – Dos Delitos e Das Penas, questionava-a enquanto meio mais eficiente de inibição de condutas criminosas, apontando-a como cruel e desumana para a sociedade, inclusive, considerando-a como um delito horrendo e premeditado pelo Estado. Propõe em seu lugar a pena de prisão perpétua.

Daquela data até hoje, os debates e argumentos têm sido elaborados conforme o tipo de Estado e o regime político adotado. Conforme a história nos revela e assevera, temos o Estado Democrático de Direitos, amparado pelo caráter constitucional, elaborado conforme as aspirações e demandas sociais, e em contrapartida os Estados ditatoriais, regidos pela vontade prevalecentes dos seus ditadores.

Os países que buscam manter-se nivelados aos parâmetros constitucionais definidos enquanto Estados Democráticos de Direitos, procuram interpretar qualquer entendimento acerca dos direitos e garantias individuais sempre em consonância com a norma constitucional definida.

A Constituição Federal – CF de 1988 do Brasil veda a aplicação da pena de morte e prisão perpétua. Admitindo a pena de morte (apenas) em tempo de guerra, onde esta deverá ser declarada pelo Presidente da República, desde que, aplicada conforme os casos previstos em lei.

No Brasil a pena de morte e a prisão perpétua estão abolidas, conforme reza no Art. 60, parágrafo 4, inciso IV, da Constituição Federal: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: os direitos e garantias individuais”. Ora, os supracitados direitos e garantias sem dúvida estão relacionados à vida, tornando assim, constitucionalmente interpretando, incompatível com os argumentos favoráveis à pena de morte.

Ademais, temos no Art. 5º da Constituição Federal, em seu inciso XLVII: “A ninguém será imputado penas cruéis; ou seja, de morte e prisão perpétua”. Verifica-se, também, que este tipo de pena não encontra amparo legal no Brasil. Portanto, qualquer argumento nesse sentido não encontraria respaldo constitucional.

Conforme se pode constatar, os marcos constitucionais citados acima  constituem causa pétrea, ou seja, não podem ser alterados em hipótese alguma por emenda constitucional. Portanto, qualquer tentativa de implantação da pena de morte e da prisão perpétua no Brasil, só seria possível, mediante nova constituição.

Outrossim, embora como afirmou-se a princípio, o futuro profissional do Direito deva albergar-se e fulcrar-se no Direito positivado, estamos cônscios e firmes que, além do caráter constitucional a ser observado e respeitado, por convicção, não concebemos a pena de morte e prisão perpétua enquanto meios capazes de suprimir condutas ilícitas e hediondas.

Podemos inferir, nesse sentido que, o direito, desde que entendido, interpretado e analisado a partir daquilo que é justo, ter-se-á manifestado na sua aplicação os propósitos que lhe justificam a razão de existência. Obviamente sem perder de vista a natureza legiferante que, subjaz a ação judicante e, exige dos operadores do direito um refletir constante acerca da problemática social.

Tal pretensão, parte do pressuposto de que os atos ilícitos hediondos no Brasil são decorrentes, também, da omissão do Estado, que apesar do seu aparato judiciário e inibidor dessas condutas, mostra-se ineficiente quanto aos meios utilizados, especialmente pela ausência de políticas públicas adequadas.

 Repudiamos as penas degradantes, a pena de morte e a prisão perpétua no país, por entendermos que, uma nação que ainda não viabilizou aos seus cidadãos uma melhor distribuição de renda, educação pública de qualidade, saúde, habitação e outras condições condizentes com um Estado de Direito além da garantia legal, encontra-se, eticamente inviabilizada de argumentar e justificar a aplicação dessas penas.

REFERÊNCIAS:
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. (trad). Carlos Nelson Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1988.

 

* Professor da UNEB (maltez.maltez@hotmail.com).
**Professora da UNEB (iza.iza@hotmail.com).

A vida é uma escola (Nádia Virginia)

Nádia Virginia
Escritora e professora da UNEB
Colaboradora do Núcleo de Audiovisual da Assessoria de Comunicação (Ascom) da UNEB

Os clichês são a escolha fácil para explicar coisas, às vezes, muito complexas. E, cá entre nós, tem gente que abusa dos clichês! Mas, e se eles, no fundo, quiserem dizer muito mais do que o abuso e o desgaste da repetição infinita os esvazia de sentido?

Hoje, o meu dia começou muito diferente do que o previsto. Será que daria conta de olhar nos olhos de cada pessoa que passasse por mim? Será que saberei sorrir e dizer bom dia? E ainda teria concentração bastante para recomendar fortemente que comparecessem ao “Ato Público em Defesa da Universidade Pública e Popular” em comemoração aos 35 anos da UNEB? É que uma das minhas funções será distribuir panfletos na entrada de pedestres aqui no Campus I.

Está cada vez mais difícil convencer as pessoas a acreditarem no que você diz, no que você defende e luta todos os dias. Convidar a Comunidade Universitária da UNEB a pararem as atividades administrativas e acadêmicas por duas, três horas para se juntarem para “lutar e resistir por uma universidade pública e popular”, para alguns, soa deslocado, fora de hora. Mas, quando então seria uma boa hora? Ouvi dizerem até que um ato como o que estamos realizando não pode ser entendido como uma ocasião de aprendizagem.

Democraticamente, me dou o direito de pensar diferente. No meu tempo de estudante universitária nunca distribui panfletos, nunca fiz discurso. A timidez me paralisava. Hoje, dia 6 de junho de 2018, distribuí muitos panfletos olhando nos olhos de cada pessoa. Sorri, disse bom dia e esclareci dúvidas relativas ao evento. Só não fiz, nem vou fazer discurso. O tempo passou, eu mudei. E, mais que tudo, tenho plena certeza de que a vida é mesmo uma escola.

O meu dia já começou me ensinando muita coisa. Imagino o que vou aprender com a aula de democracia, universidade pública e popular ao vivo no Teatro da UNEB hoje, a partir das 14h horas?

As Projeções da UNEB (Edivaldo Boaventura)

Edivaldo M. Boaventura
Ex-reitor da UNEB

O ano começou para a UNEB com a nova gestão do reitor José Bites de Carvalho, reforçada pelo vigoroso pronunciamento do vice-reitor Marcelo Ávila.

Com a experiência de quatro anos, o reitor Bites projeta novos objetivos para a multicampia no território baiano com 560 mil km2 e 15 milhões de habitantes.

Começamos pelo cenário emblemático com as 24 bandeiras municipais onde se encontram os campi da universidade. O entusiasmo pela solenidade com vibração pela participação do coral de Jacobina, que abriu e acompanhou a solenidade de posse, em 5 de janeiro, com a presença e fala do secretário de Educação, senador Walter Pinheiro, e do secretário Jaques Wagner, além de outras presenças de destaque.

A mensagem do reitor Bites foi, oportunamente, programática. A experiência dos anos de reitorado iluminou as proposições do período novo que começou. O reitor Bites trabalha com a construção de uma universidade popular, democrática e plural. Considerando que há espaços em branco, isto é, sem educação superior, o reitor Bites insiste nos projetos estratégicos de desenvolvimento com a articulação das demais instituições de educação superior: universidades federais, institutos federais e universidade estaduais.

Dessa maneira, reforçou o sentimento de unidade com a consolidação do Fórum de Reitores das Instituições Públicas de Educação Superior do Estado da Bahia. Somente a formulação da multicampia da universidade alcançou regiões carentes de professores e de profissionais onde ainda existia universidade.

O amadurecimento institucional e a recepção das demandas de educação para os afrodescendentes, conduziram pioneiramente, a UNEB ao sistema de cotas étnico-social com  abertura para as comunidades menos favorecidas.

O diálogo democrático entre as partes constitutivas da instituição foi possível com a participação de estudantes, docentes, servidores e técnicos administrativos, da equipe gestora central, dos diretores e diretoras, que assumiram o novo projeto de gestão que se instalou. Fazendo o balanço da gestão, instituíram-se políticas e ações para a transparência e democratização da gestão.

O fortalecimento das ações afirmativas com base na sustentabilidade e autonomia possibilitará que a UNEB potencialize os efeitos de transformação e emancipação social. Ao lado de cursos de graduação e pós-graduação formais, coexiste a universidade popular, livre e gratuita. Seguem as perspectivas para 2018-2021:Ç educação a distância, mestrados e doutorados, do orçamento participativo e da Estatuinte.

*Artigo publicado na edição de 12 de janeiro do Jornal A Tarde.

 

 

Quantas Helens ainda rolarão ao chão? (Douglas de Almeida)

Douglas de Almeida*
Poeta e estudante do curso de Pedagogia da UNEB (Salvador)

Uma mensagem que aparece no celular. – Obrigado meu bem!
Um vestido mais curto ou um decote que chama a atenção!
Um diploma que sinaliza, com alegria, uma ascensão!
Um dia em que, cansada, a um apelo sexual, diz. – Agora não!
Um motivo… e mais outro! A mão de encontro ao rosto,
Um chute bem abaixo do umbigo, desferido com precisão,
O nylon, a corda, o cordão: reminiscências da escravidão!
A faca, na mão a penetrar… a cortar algo que já está cortado!

Ela me deixou! O que dirão meus amigos? Ah isso não!
O que direi quando descobrirem que não sou mais o chefão!
Ela sabe mais do que eu! Isso nunca! Isso nunca! Isso não!
Não importa o motivo! O egoísmo é sempre superlativo!
A força é apenas um sinal de fraqueza, covardia, possessão!
Quantas Helens rolarão, nuas, o pescoço varado, pelo chão?
Marias, Cristinas, Joanas, Sílvias, Jaquelines, onde estão?

Um desespero me invade, um tremor toma conta do meu corpo.
Não quero mais estatísticas, entrevistas, depoimentos,
Fotos nas redes sociais. Denúncias nos jornais. Dores, gritos, ais!
Meu olhar se perde em um imaginário e infindável horizonte.
Basta de justificar! A boneca para Maria e o carro para João.
Já passou o tempo do lamento! Queremos justiça, punição!
Este (será um poema?) é meu grito de dor! Minha indignação!

 

*Natural da cidade baiana de Itabuna, 61 anos, tem poemas publicados em revistas, livros e antologias. Foi editor da revista “Sem Perfil” e organizador da mostra “La nueva generación de la poesía brasileña”, em Buenos Aires. Inaugurou o Selo Editorial Castro Alves, da Câmara Municipal de Salvador, em 2015, com o livro “Movimento Poetas na Praça: entre a transgressão e a tradição”.

As coisas mudam: do fundo do fim se volta ao começo (Nádia Virginia)

 

Nádia Virginia
Escritora e professora da UNEB
Colaboradora do Núcleo de Audiovisual da Assessoria de Comunicação (Ascom) da UNEB

Outro dia, eu caminhava num quarteirão de meu novo endereço, em direção ao antigo, e vi uma movimentação diferente na rua. Mais à frente, um rapaz resolveu se deitar no asfalto. Parece que ele queria morrer, descansar um pouco ou talvez estivesse sendo movido pela viagem das drogas, sabe-se lá. Mas, fazer uma coisa desta numa avenida tão movimentada como aquela era mesmo, independente da motivação, uma tremenda loucura. Parece que, no mesmo instante, um carro quase o atropelou. Parece que era uma mulher ao volante e ela quis chamar o SAMU, ajudar o rapaz de alguma forma, mas ele se levantou do asfalto, aparentemente bem, e foi cercado por gente que queria dar uma ajuda ou dar uma olhada.

Ao se deitar no asfalto, aquele rapaz deve ter olhado para o céu. Provavelmente viu que o céu era verde, um céu de folhas de árvores que se encontram lá em cima e fazem um túnel verde fechado naquela avenida. Provavelmente, no pouco tempo que permaneceu deitado no asfalto, uma chuva de folhas secas caiu sobre ele, porque estamos em pleno outono. Pingos de água também devem ter caído por sobre o asfalto, porque São Pedro manda chover nessa época do ano.

A motorista que quase cometeu um atropelo involuntário, uma parte daquela gente toda em volta e eu, gostaríamos que as coisas mudassem para aquele rapaz, para jovens como ele e para todos nós brasileiros. Há mudanças que dependem de nós e outras que acontecem, como ciclos em movimento constante.

No mês de junho as coisas mudam: na tradição luso-brasileira, Santo Antônio, além de atender as aflições e restituir os objetos perdido, tem que assumir uma função extra de Cupido. São João, que se alimentava de gafanhotos, até que fica bem na foto com um carneirinho debaixo do braço. São Pedro recebe atenção especial das viúvas e encerra as festividades do mês.

O mundo é muito grande, em junho, o sol se muda para o outro hemisfério e deixa a chuva e um pouco de frio por aqui, é o nosso solstício de inverno. A natureza, as coisas sabem que chegou o tempo da colheita, da celebração, do amadurecimento. O milho sabe de tudo e sorri seu riso lindo de dentes amarelos, antes disso, as folhas já cansadas de saber, se deixam cair no mundo, por amor ao outono. E nós, seres humanos, a gente, vai vivendo, sem parar para mudar, sem se dar conta de que vai mudando, como tudo.

Mês de junho, mês de junho, olhe em volta, olhe para o céu, veja que coisa linda é a vida, a nossa vida se renovando!

Respeitem meu filá e o branco de Kailane (Gildeci Leite)

Gildeci de Oliveira Leite
Escritor e professor da UNEB
Assessor de Projetos Interinstitucionais para a Difusão Cultural (Apidic) da UNEB

Um dia me criticaram por estar usando meu filá. Outra vez me chamaram de palhaço, pois eu usava meu filá. Acharam-me desengonçado: em vez do capelo, aquele chapéu utilizado em formaturas, eu me protegia com o meu filá. Sem falar das vezes que uso terno e filá. O filá é um gorro que usam em países muçulmanos e nós em religiões de axé. Gosto do filá comprido, lembra o gorro de um saci, o menino negro tão injustiçado, que nos ensinaram a temer suas travessuras. Olhem, não tenho medo de usar o meu filá, já fiz poesia sobre o constrangimento que passei. Penso agora na menina Kailane Campos que foi agredida por ser de candomblé. Provavelmente os agressores, sem culpa, sem necessidade de desculpa, pensaram que estavam esmagando a cabeça da serpente ou o próprio diabo. Lembro de algumas vezes ao chegar no trabalho e manifestarem risos por minha homenagem e respeito a Obatalá, Oxalá, o senhor do pano branco. Subia o Alto da Boa Vista, as escadas da Uneb e risos de canto de boca circundavam-me.

Foi axé, convenci por encanto. Em algumas semanas, alunos e alunas vestiam branco. Seria somente por agrado ou será que cantavam para mim uma espécie de acalanto? Foi uma homenagem, uma resposta coletiva ao preconceito que sofria. Outro dia, bem mais distante daquela primeira década dos anos 2000 de Seabra, próximo do hoje, uma colega quase não conseguiu disfarçar o riso, a chacota. Foi ridicularizada por ela mesma. Imaginem que até mãe de namorada já havia implicado comigo por minha fé, por ter orixás comigo. Namoramos até quando tínhamos que namorar, mas meus orixás, meu ori, meu juntó, meu eledá, meus ancestrais, meus caboclos e caboclas não posso, nem quero largar, estão dentro de mim.

Essas histórias como a da menina Kailane Campos não se iniciaram aqui. Estratégia antiga, essa de diabolizar o outro. Para gente assim, cheia de preconceito, o diabo é sempre aquele do qual eles querem alguma coisa. Querem a nossa felicidade de viver e principalmente o resultado de nossa força de trabalho, nosso suor e nossos ganhos. Todos já percebemos que a convertidos impõe-se uma nova maneira de vestir, sorrir, viver, direcionam os gostos e investimentos para determinado lugar. Tanto ódio assim tem na verdade uma disputa de mercado, um totalitarismo cruel em busca de uma superioridade inexistente.

Sei que há muita gente que só reproduz as ordens dos chefes de rebanhos e na maioria das vezes até esses pseudochefes se acham tão imbuídos da verdade e de uma santa missão higienizadora que aceitam as migalhas do poder para tentar destruir o outro. Há exceções! Entrego todos a Exu, Ogum, Xangô, Oxóssi, Omolu, Iansã, Oxum, Nanã, Iemanjá, Oxumarê, a todos os orixás, inquices, voduns, ancestrais, caboclos. Alguém pode estar dizendo “viu como eles são do mal?”. Oxente, desde quando entregar as decisões às deidades negras se caracteriza malefício? Entendi, acham que somente deidades brancas são benéficas. O preconceito começa por aí! Nos deixem em paz, levem seu diabo com vocês, ele é um deus cristão. Estou sempre por aqui aberto à alegria e à amizade, mas respeitem minha fé e o meu filá. Se quiserem a minha amizade, saibam que minha fé vai junto! Axé!

Publicado na edição do dia 30 de junho do Jornal A Tarde

#TodoDiaÉDiadeTornar-seMulher (Nádia Virginia)

Nádia Virginia
Escritora e professora da UNEB
Colaboradora do Núcleo de Audiovisual da Assessoria de Comunicação (Ascom) da UNEB

É dia de mulher na segunda-feira, que ela começa correndo pra lá e pra cá, correndo contra o relógio, correndo no asfalto, na chuva, correndo pra se cuidar ou pra não chegar depois da hora. É dia de mulher na terça-feira, em que ela estremece só de pensar que tem que fazer mil reuniões, assinar documentos, ir ao mercado, cumprir os prazos e esquece de pensar um pouco em si e, quando vê, já passou o ônibus. E nem vai dar pra tomar mais um café porque o outubro rosa está batendo na porta. Também é dia de mulher na quarta-feira, sem terço, sem rosário, sem contas, sem colar e já foi metade da semana enquanto ela ainda faz as contas, faz as unhas enquanto faz seus planos, faz listas atende o celular. Será que ainda é cedo? Já é tão tarde… E aí? Mais tarde, quem sabe, ainda tente refazer seus sonhos. É quinta-feira! É dia de mulher. Ela merece um tempo, mas é dia útil: Dia da lavagem, dia de filas intermináveis, dia de pagar não sei o que e já nem cabe perguntar o que quer uma mulher… E sexta-feira, mais um dia de mulher. Dia que é quase véspera de tudo, e ela está quase exausta, quase. Porque sábado é mais um dia de mulher e, ela mal pode esperar pra ser dona do seu tempo, pra ser quem bem quiser, pra ser a arquiteta do seu destino: ser mulher, engenheira, juíza, filha, jornalista, diretora, irmã, atleta, chefe, mãe, presidenta, artista, madrinha, tia, malabarista, avó, amiga… Ah, Ela pode ser tantas coisas! Ainda bem que chegou domingo que é dia de mulher, dia de nada e de tudo, de fazer tudo e não fazer nada. Dia de viver a plenitude de se tornar a mulher que se quiser ser.